terça-feira, março 12

Relatos de um Peregrino Russo - LIVRO






Relatos de um Peregrino Russo



Anônimo



RELATOS

DE UM

PEREGRINO RUSSO



Tradução para o francês
Jean Laloy

Tradução
Tito Kehl

M M I I I


A todos os mestres,
para retribuir e para transmitir.





INTRODUÇÃO


Os Relatos de um peregrino russo apareceram pela primeira vez em Kazan por volta de 1870. Esta primeira edição era, ao que parece, incompleta e algo incerta. Uma versão correta dos Relatos foi publicada em 1881, também em Kazan, e reeditada em 1884. Não houve outra tiragem na Rússia até os eventos de 1917. Depois da revolução, os Relatosforam reimpressos em Paris em 1930, graças aos cuidados do professor Vycheslatsev. Uma primeira tradução francesa foi publicada na revista Irénikon, editada pela abadia beneditina de Chèvetogne, na Bélgica.

O autor dos relatos é desconhecido. De acordo com o prefácio da edição de 1881, o padre Paisius, abade do mosteiro de São Miguel Arcanjo de Tcherémisses, perto de Kazam, copiou o texto de um monge russo deAthos, cujo nome também é desconhecido. Segundo outras indicações, o manuscrito dos Relatos estaria, por volta de 1860, nas mãos de uma religiosa dirigida pelo estaroste Ambroise, do mosteiro de Optina, dentre cujos papéis outros três relatos, de estilo menos puro, foram encontrados e publicados em 1911. O autor seria um “cidadão da província de Orel”, e podemos pensar num certo Nemytov que vinha às vezes a Optina conversar com o padre Macário, predecessor de Ambroise. Segundo as mesmas indicações, o bispo Teófano o Recluso escreveu em uma de suas cartas que ele “corrigiu e completou” a primeira edição dos Relatos. De fato, a edição de 1881 intitula-se “edição revisada e completada”.

Se examinarmos o texto em si, percebemos que ele está organizado segundo um plano didático que revela a intervenção de uma mão experiente. Podemos assim concluir que os Relatos têm uma dupla origem. Lembranças, cuja autenticidade parece certa, foram contadas ou redigidas por um ou mais peregrinos. Um religioso deu forma a estes relatos para que eles servissem a um ensinamento espiritual. Este religioso pertenceria ao meio de Optina, a solidão que buscaram Gogol, Ivan Kireevski, Dostoievski, Vladimir Soloviev, Leon Tolstoi e muitos outros.

Os Relatos de um peregrino estão ligados assim ao grande movimento literário do século XIX. No tumulto de escritos de todos os gêneros em que se entrechocavam as tendências extremas do caráter russo, faltava esta nota cristalina que foi sem dúvida sua tônica secreta.




***




O peregrino faz o leitor penetrar no coração da vida russa, logo após a guerra da Criméia e antes da abolição da servidão, ou seja entre 1856 e 1861. Vemos passar os personagens do romance russo, o príncipe ansioso por expiar sua vida dissipada, o mestre dos correios bêbado e polemista, o escrivão descrente e liberal. Os condenados seguem suas etapas para a Sibéria, os correios imperiais esgotam seus cavalos na estepe infindável, os desertores rondam nas florestas. Nobres, plebeus, funcionários, membros de seitas, reitores e padres de vilas, toda esta antiga Rússia terrena ressuscita com seus defeitos, dos quais o menor não é a bebedeira, e suas qualidades, das quais a mais bela é a caridade, o amor ao próximo por amor a Deus. Na paisagem, a terra russa, planície imensa aonde o olhar se perde, florestas desertas, albergues à margem dos caminhos, igrejas de cores vivas com seus sinos cintilantes.

Para se guiar, o peregrino não possui mais do que dois livros, a Bíblia e uma coletânea de textos patrísticos, a Filocalia. Apenas este nome permite definir a escola à qual pertence. Russo do século XIX, o peregrino inspira-se em uma das mais veneráveis tradições do Oriente cristão, a tradição hesiquiasta.[1]

O hesiquiasmo remonta aos primeiros séculos cristãos. Ele tem sua origem no monte Sinai e no deserto do Egito. Na Igreja do Oriente, ele surge como a corrente mística por oposição à tradição especificamente ascética nascida de são Basílio.

Inspirados em Orígenes, Evagro e Gregório de Nice, as escolas místicas do Oriente cristão estabelecem como fim para o homem a deificação. Esta é frequentemente compreendida como a restauração da alma à sua semelhança divina. Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, ensina o Gênesis (I, 26). A natureza intelectual e moral do homem é feita à imagem de Deus. Ela se torna semelhante a ele quando, por sua caridade, Deus vem habitar a alma humana, elevando-a assim acima de toda a Criação. Libertado das paixões pela prática da virtude, o espírito contempla as razões das coisas criadas e recebe a união com Deus no amor. Esta união pode se dar na luz ou nas trevas, pode tomar uma forma mais intelectual ou mais afetiva. Ela permanece sempre um mistério, porque ela une a alma criada ao Deus incriado e transcendente. A teologia mística do Oriente cristão, assim como a do Ocidente mas com acento diferente, situa-se fora da gnose, do panteísmo e do naturalismo.

A tradição espiritual que, sob a influência de grandes contemplativos como Diádoco de Foticéia (século V), constitui-se pouco a pouco nos mosteiros do Oriente, atribui ao coração um papel central na vida da oração. Considerado como a sede da inteligência e da sabedoria, o coração deve voltar-se para Deus sem descanso. Ele será fortalecido para esta finalidade por meio de uma oração constantemente repetida: Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim. É a prece de Jesus, mencionada desde o século VI por são João Clímaco. Este método não conduz por si só ao recolhimento. Conjugado com a prática das virtudes, iluminado pelo amor de Deus, ele favorece a oração. Mutatis mutandis, ela faz pensar na prática do rosário no Ocidente.

A partir do século XI, desenha-se uma evolução. Sob a influência indireta de um místico profundo, são Simeão o Novo Teólogo, existe uma tendência a valorizar exageradamente a consciência psicológica do sobrenatural. Ninguém será verdadeiramente cristão se não tiver experimentado concretamente a graça. Os hesiquiastas repelem as visões imaginárias mas, ao buscar a iluminação consciente, expõem-se a certos perigos. Alguns, tomando o coração no sentido fisiológico, atribuem demasiada importância aos meios “científicos” de alcançar a oração: posição do corpo, papel do coração, controle da respiração, etc. Outros fazem da visão experimental da luz o objetivo da oração. Este aspecto extremo do hesiquiasmo suscita vivas controvérsias no século XIV nas quais brilha Gregório Palamas. Entretanto a tradição autêntica continua a inspirar numerosos contemplativos.

O hesiquiasmo foi transmitido à Rússia por Nilo de Sora (1435-1508), uma das mais importantes figuras do monaquismo russo. Caído posteriormente no esquecimento, esta tradição foi restaurada no final do século XVIII por um outro estaroste, Paisius Velitchkovski, instalado na Moldávia. Os textos hesiquiastas que ele reuniu e publicou em 1794 na Filocalia eslovena, a Dobrotoljubié, guiaram os solitários e os espirituais russos do século XIX. Estes retomam assim uma tradição bem anterior à ruptura da unidade e da qual alguns aspectos foram bem conhecidos da idade média latina.




***




Seja qual for a idéia que façamos do hesiquiasmo enquanto tal, a experiência espiritual transmitida nos Relatos é a do peregrino russo. Esta experiência é pura. Se por instantes o peregrino parece acreditar que apenas a prática da prece de Jesus pode levar a conhecer “como o Senhor é bom”, seu amor por Deus é grande demais para não ser de origem sobrenatural. O ascetismo de sua vida é também um guardião para ele. Errando de lugar em lugar, sem posse alguma, a prece perpétua é para ele o meio de fixar a atenção sobre o mistério de Deus.

A fé do peregrino é alimentada pela Escritura e a Tradição. Àqueles que o procuram, ele oferece conselhos práticos e explicações doutrinais, não exortações retóricas. Conhecendo o homem à luz de Deus, ele sabe seu lugar e seu papel no universo.

A moral do peregrino não é nem um código nem uma higiene. Suas ações são guiadas pelo desejo da perfeição espiritual. O ascetismo é a condição para a contemplação: ele não tem sentido em si mesmo. A vida espiritual é uma: da fé provêm as obras; sem obras não há fé. Caminhando pelo mundo da queda e do pecado, o peregrino faz seu caminho para Jerusalém celeste, na qual ele penetrará no fim, inteiro, de corpo e alma. Ele às vezes recebe graças que fazem pensar, em pleno século XIX, na experiência franciscana.

“Árvores, plantas, pássaros, terra, ar, luz, todos me diziam que existem para o homem, que eles testemunham o amor de Deus pelo homem, tudo orava, tudo cantava glória a Deus.”

Esta luz não é um privilégio do Oriente. É a luz do Evangelho. “Quem busca a felicidade, dizia recentemente um religioso contemplativo do Ocidente, encontra a cruz. Quem busca a cruz, encontra a felicidade.” Que a criação é boa e que depois da queda ela será inteiramente tocada pela redenção, os grandes doutores medievais sabiam tão bem quanto Gregório de Nice. Se a idade média ocidental se liga ao mistério da cruz é porque as implicações maravilhosas da Encarnação já haviam sido reveladas aos Padres. O Oriente e o Ocidente cristãos não se opõem: eles se completam e aprofundam mutuamente.




***




Os Relatos de um peregrino abrem assim grandes perspectivas, o que não lhes tira nada do caráter próprio. O peregrino é o protótipo da piedade russa. Esta nunca configurou uma escola de pensamento, uma doutrina específica. Tal como um ícone de Novgorod de cores intensas e leves, ela renovou os modelos recebidos de Bizâncio e deu às tradições do Oriente cristão um tom original e novo.

O sentido do mistério do homem, a compaixão diante da dor e do pecado, a simplicidade do coração, a imitação quase mímica da vida do Cristo e das verdades evangélicas, são os traços constantes da piedade russa. Existe assim, na Rússia, um imenso potencial religioso que só se expressa raramente. Até o século XIX, não existe uma teologia russa. Tudo era traduzido do grego, ou acessoriamente do latim. A síntese entre a corrente da piedade popular e o pensamento religioso só se produziu em alguns poucos casos, dos quais o peregrino é um exemplo. Esta ausência de unidade é o que à idéia religiosa russa seu caráter trágico. A Igreja conhecia bem a ingerência do Estado. O cisma enfraqueceu-a. Nas florestas aonde Nilo de Sora fixou sua ermida, acenderam-se no século XIX as fogueiras dos Antigos Crentes. A luz espiritual refugiou-se nos estarostes. Às vezes ela iluminou alguns fiéis, mas sua irradiação não se estendeu muito longe. Os esforços dos intelectuais para criar no século XIX uma doutrina religiosa russa permaneceram isolados. O mais profundo dentre eles, Vladimir Soloviev, concebeu a idéia de uma nova Rússia que reconciliasse em si o Oriente e o Ocidente, utilizando “a atividade da razão para desenvolver e realizar plenamente os princípios da fé”. Mas esta visão não chegou a tomar corpo.

Ao invés da razão auxiliar no desenvolvimento dos princípios da fé, a Igreja, a fé e os fiéis foram perseguidos em nome de uma certa idéia de razão. A pena se prolonga. Sua própria duração mostra que a Igreja sobreviveu. A fonte da graça e dos sacramentos não desapareceu. O espírito da oração subsiste. O encontro entre a razão esclarecida e a fé depurada talvez esteja sendo preparado na obscuridade.




Jean Laloy
Paris, outubro de 1965




PRIMEIRO RELATO



Pela graça de Deus sou homem e cristão, por ações grande pecador, por estado peregrino sem abrigo, da mais baixa condição, sempre errando de lugar em lugar. Como pertences, trago sobre os ombros um saco com pão seco, em meu bolso a santa Bíblia, e isto é tudo. No vigésimo quarto domingo após a Trindade[2], eu entrei na igreja para ali rezar durante o ofício; estava sendo lida a Epístola do Apóstolo aos Tessalonicenses, na passagem[3] em que é dito: Orai sem cessar. Estas palavras penetraram profundamente em meu espírito e eu me perguntei como é possível orar sem cessar quando cada um deve ocupar-se de diversos trabalhos para manter sua própria vida. Eu procurei na Bíblia e li com meus olhos exatamente o que eu havia escutado: é preciso orar sem cessar[4], rezar com o espírito em todas as ocasiões[5], em todo lugar erguer as mãos suplicantes[6]. Eu refleti muito, mas não sabia o que decidir.

Que fazer – pensei eu –, onde encontrar alguém que possa me explicar essas palavras? Irei às igrejas nas quais pregam homens de renome, e talvez aí eu encontre o que procuro. Assim, coloquei-me a caminho. Eu ouvi muitos e excelentes sermões sobre a prece. Mas eram todos instruções sobre a prece em geral: o que é a prece, porque é preciso orar, quais são os frutos da oração. Mas como chegar a orar verdadeiramente – disto ninguém falou nada. Eu escutei um sermão sobre a prece em espírito e a prece perpétua; mas não se indicava o modo de se chegar a esta prece. Assim, a frequentação dos sermões não me trouxe o que eu desejava. Deixei de ir aos pregadores e me decidi a buscar com a ajuda de Deus um homem sábio e experiente que me explicasse esse mistério, pois era para isto que meu espírito sentia-se invencivelmente atraído.

Por muito tempo caminhei; eu lia a Bíblia e me perguntava se não encontraria em algum lugar um mestre espiritual ou um guia sábio e cheio de experiência. Uma vez disseram-me que num vilarejo vivia há muito tempo um fidalgo[7] que trabalhava por sua salvação: ele construíra perto de si uma capela, jamais saía de casa e sem cessar orava a Deus ou lia livros espirituais. Com esta informação, eu parei de andar e comecei a correr até o vilarejo; lá chegando, dirigi-me a este senhor.

- O que deseja de mim?, perguntou-me.

- Soube que é um homem sábio e piedoso; por isso eu lhe peço em nome de Deus que me explique o que significam estas palavras do Apóstolo: Orai sem cessar, e como é possível orar assim. É isto que desejo compreender e até o momento não tenho conseguido alcançar.

O fidalgo permaneceu em silêncio, olhou-me atentamente e disse:

- A oração interior é o esforço incessante do espírito humano para atingir a Deus. Para obter sucesso neste benéfico exercício, convém pedir com muita constância ao Senhor para que nos ensine a orar sem cessar. Reze mais e com mais zelo, a prece o fará compreender por si só como torná-la perpétua; mas para tanto será preciso muito tempo.

Com estas palavras, ele me fez servir uma refeição, deu-me algumas coisas para o caminho e me deixou. Mas ele não havia me explicado nada.

Retomei meu caminho; eu pensava, eu lia, eu refletia como podia sobre o que me dissera o fidalgo e no entanto era-me impossível compreender; mas eu tinha tanto desejo de chegar a esta compreensão, que minhas noites passavam sem sono. Após haver percorrido duzentas verstas[8], cheguei a uma capital de província. Ao longe divisei um mosteiro. Na hospedaria disseram-me que neste mosteiro vivia um superior piedoso, caritativo e hospitaleiro. Fui até ele. Recebeu-me com bondade, fez com que me sentasse e ofereceu-me algo para comer.

- Santo padre!, disse-lhe eu, não tenho necessidade de refeição, mas queria que me desse um ensinamento espiritual: como fazer para ser salvo[9]?

- Como obter a salvação? Pois bem, viva segundo os mandamentos, ore a Deus e será salvo!

- Eu escutei que devemos orar sem cessar, mas não sei como orar sem parar e sequer consigo entender o que significa a prece perpétua. Eu lhe peço, meu pai, que me explique isto.

- Eu não sei, meu irmão, como explicar-lhe melhor. Mas espere! Eu tenho um livrinho no qual isto está exposto; e ele trouxe a Instrução espiritual do homem interior[10] de são Dimitri. Aqui está, leia esta página.

Eu comecei a ler o que se segue:

“Estas palavras do Apóstolo: é preciso orar sem cessar, aplicam-se à prece feita com a inteligência; a inteligência, de fato, pode estar constantemente mergulhada em Deus e rezar a ele sem cessar.”

- Explique-me de que modo a inteligência pode estar permanentemente mergulhada em Deus sem distração e orando sem cessar.

- Isto é uma coisa muito difícil, se Deus não a tornar um dom de si, disse o superior.

Mas ele não havia me explicado nada.

Eu passei ali a noite e, na manhã seguinte, tendo-o agradecido por sua amável acolhida, coloquei-me de novo a caminho sem saber muito bem aonde ir. Estava triste com minha incompreensão e para me consolar, eu lia a santa Bíblia. Desta maneira caminhei pela estrada por cinco dias; enfim, num entardecer, encontrei um velhote que tinha um certo ar religioso.

À minha indagação, ele respondeu-me que era monge e que o retiro em que vivia com alguns irmãos ficava a dez verstas da estrada; ele me convidou a ficar com eles.

- Em nossa morada, disse-me, recebemos os peregrinos, cuidamos deles e os alimentamos como em um albergue.

Eu não estava muito disposto a ir até lá, e lhe disse:

- Meu repouso não depende de hospedagem, mas de um ensinamento espiritual; eu não procuro comida, pois tenho bastante pão seco no meu bornal.

- Mas que tipo de ensinamento você procura, e o que deseja compreender melhor? Venha, venha conosco, caro irmão; nós temos estarostes[11] experientes que poderão lhe dar uma direção espiritual e guiá-lo sobre o caminho verdadeiro para a luz da palavra de Deus e dos ensinamentos dos Padres.

- Veja, meu pai, faz quase um ano que, estando presente ao ofício, ouvi este mandamento do Apóstolo: Orai sem cessar. Não sabendo o que entender destas palavras, pus-me a ler a Bíblia. Lá também, em muitas passagens, encontrei o mandamento de Deus: é preciso orar sem cessar, sempre, em todas as ocasiões, em todos os lugares, não apenas durante a jornada de trabalho, não apenas durante a vigília, mas também durante o sono: Eu durmo, mas meu coração vigia[12]. Isto muito me espantou e não pude compreender como cumprir tal coisa e quais são os meios de o conseguir; um violento desejo e a curiosidade despertaram em mim: dia e noite estas palavras não saíam de meu espírito. Assim comecei a freqüentar as igrejas: escutei sermões e sermões sobre a prece; cansei-me de escutar, mas neles não encontrei como orar sem cessar; falava-se sempre da preparação para a prece e seus frutos, sem ensinar como orar sem cessar, nem o que significa uma tal oração. Li muitas vezes a Bíblia e nela encontrei o que havia ouvido; no entanto não atingi a compreensão desejada. E, depois de tanto tempo, permaneço incerto e inquieto.

O estaroste persignou-se e tomou a palavra:

- Agradeça a Deus, irmão bem amado, por ter revelado a você uma atração irresistível para a prece interior perpétua. Reconheça nisto o chamado de Deus e acalme-se pensando que desta forma a concordância da sua vontade com a palavra divina foi devidamente provada; foi-lhe dado entender que não é a sabedoria deste mundo nem um vão desejo de conhecimentos que conduz à luz celeste – a prece interior perpétua – mas ao contrário é a pobreza de espírito e a experiência ativa na simplicidade do coração.

Por isso você não deve se espantar de não ter entendido nada de profundo sobre o ato de rezar e por não ter aprendido como chegar a esta atividade perpétua. Na verdade, fala-se muito sobre a oração e existem inúmeras obras recentes escritas a respeito, mas todos os julgamentos dos seus autores estão fundamentados sobre a especulação intelectual, sobre os conceitos da razão natural e não sobre a experiência alimentada pela ação; eles falam mais dos atributos da prece do que de sua essência própria. Um explica muito bem porque é necessário rezar; outro fala do poder e dos efeitos benéficos da prece; um terceiro, das condições necessárias para bem orar, ou seja o zelo, a atenção, o calor do coração, a pureza de espírito, a humildade, o arrependimento que é preciso para se por a rezar. Mas o que é a oração e como aprender a orar – a estas questões que no entanto são essenciais e fundamentais, raramente encontramos resposta entre os pregadores destes tempos; pois elas são mais difíceis do que todas as suas explicações e demandam não um saber escolar mas um conhecimento místico. E, coisa ainda mais triste, esta sabedoria elementar e vã os leva a medir a Deus com uma escala humana. Muitos cometem um grande erro, ao pensarem que os meios preparatórios e as boas ações engendram a oração, enquanto que na verdade é a oração a fonte das obras e das virtudes. Eles tomam erradamente os frutos ou as conseqüências da prece pelos meios de chegar a ela, e assim diminuem sua força. Trata-se de um ponto de vista inteiramente oposto à Escritura, pois o apóstolo Paulo fala assim da oração: Eu lhes recomendo orar acima de tudo[13].

É assim que o Apóstolo coloca a oração acima de tudo. Muitas boas obras são requeridas ao cristão, mas a obra da prece está acima de todas as outras, pois, sem ela, nenhum bem pode cumprir-se. Sem a oração freqüente, não podemos encontrar o caminho que conduz ao Senhor, conhecer a Verdade, crucificar a carne com suas paixões e seus desejos, sermos iluminados no coração pela luz de Cristo e nos unirmos a ele na salvação. Eu digo freqüente, pois a perfeição e a correção da nossa prece não dependem de nós, como também diz o apóstolo Paulo: Não sabemos o que pedir[14]. Apenas a freqüência foi deixada em nosso poder como meio de atingirmos a pureza da oração que é a mãe de todos os bens espirituais.Adquira a mãe e você terá uma descendência, diz são Isaac o Sírio, ensinando que é preciso antes adquirir a oração para podermos depois colocar em prática as virtudes. Mas os que estão pouco familiarizados com a prática e os ensinamentos misteriosos dos Padres conhecem mal essas questões e pouco falam delas.

Assim conversando, imperceptivelmente chegamos ao retiro. Para não me separar deste sábio ancião e satisfazer o quanto antes meu desejo, apressei-me em dizer-lhe:

- Eu lhe peço, pai venerável, explique-me o que é a prece interior perpétua e como posso aprendê-la; vejo que você tem uma experiência profunda e segura.

O estaroste acolheu meu pedido com vontade e convidou-me a ficar:

- Venha comigo, eu lhe darei um livro dos Padres que lhe permitirá compreender claramente o que é a oração e a entendê-la com a ajuda de Deus.

Entramos em sua célula e o estaroste dirigiu-me as seguintes palavras:

- A prece de Jesus interior e constante é a invocação contínua e ininterrupta do nome de Jesus com os lábios, o coração e a inteligência, com a sensação de sua presença, em todo lugar e todo tempo, mesmo durante o sono. Ela é expressa por estas palavras: Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim! Aquele que se habitua com esta invocação sente um grande consolo e a necessidade de dizer sempre esta oração; ao final de algum tempo, ele não pode mais passar sem ela e ela brota nele por si mesma. Compreende agora o que é a prece perpétua?

- Compreendo perfeitamente, meu pai! Em nome de Deus, ensine-me agora como chegar a isto, exclamei cheio de alegria.

- Como aprender a rezar, isto o veremos neste livro. Ele se chama Filocalia. Ele contém a ciência completa e detalhada da prece interior perpétua exposta por vinte e cinco Padres; ele é tão útil e tão perfeito que é considerado como o guia essencial da vida contemplativa e, como diz o bem-aventurado Nicéforo, “ele conduz à salvação sem pena e sem dor”.

- Será ele mais elevado do que a santa Bíblia?, perguntei.

- Não, ele não é mais elevado nem mais santo do que a Bíblia, mas ele contém explicações luminosas de tudo o que permanece misterioso na Bíblia em razão da fraqueza de nosso espírito, cujo alcance não chega a estas alturas. Eis uma imagem: o sol é um astro majestoso, brilhante e soberbo; mas não podemos observá-lo a olho nu. Para contemplar este rei dos astros e suportar seus raios inflamados, é preciso empregar um vidro artificial, infinitamente menor e menos brilhante do que o sol. Pois bem, a Escritura é este sol resplendente e a Filocalia o pedaço de vidro. Veja agora, eu vou ler-lhe como exercer a oração interior perpétua.

O estaroste abriu a Filocalia, escolheu uma passagem de são Simeão o Novo Teólogo e começou:

- “Permaneça sentado no silêncio e na solidão, incline a cabeça, feche os olhos; respire mais devagar, observe com sua imaginação o interior do seu coração, reuna sua inteligência, ou seja seu pensamento, da cabeça para o seu coração. Diga ao respirar: Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim, em voz baixa, ou simplesmente em espírito. Esforce-se por afastar todos os pensamentos, seja paciente e repita muitas vezes este exercício.”

Depois o estaroste explicou-me tudo com exemplos e lemos ainda na Filocalia as palavras de são Gregório o Sinaíta e dos bem-aventurados Calixto e Inácio. Tudo o que líamos, o estaroste me explicava nos seus termos. Eu escutava com atenção e enlevo e esforçava-me por fixar todas estas palavras em minha memória com a maior exatidão. Passamos assim toda a noite e fomos às matinas sem termos dormido.

O estaroste, despedindo-se de mim, abençoou-me e me disse para voltar, durante meus estudos sobre a oração, para me confessar com franqueza e simplicidade de coração, porque é vão atirar-se à obra espiritual sem guia.

Na igreja, senti em mim um zelo ardente que me empurrava a estudar com cuidado a prece interior perpétua, e eu pedia a Deus que me ajudasse. Depois eu pensei que seria difícil voltar a ver o estaroste para me confessar ou para pedir-lhe conselho. Na hospedagem, não poderia ficar mais do que três dias, e nas proximidades do retiro não havia abrigo... Felizmente, fiquei sabendo que havia um vilarejo a quatro verstas dali. Lá fui eu em busca de um lugar para ficar e, para minha felicidade, Deus me favoreceu. Pude me empregar como guarda para um camponês, com a condição de passar todo o verão isolado numa cabana nos fundos da horta. Graças a Deus, encontrara um local tranqüilo. Assim, pus-me a viver e estudar do modo indicado a prece interior, indo visitar o estaroste muitas vezes.

Durante uma semana, exercitei-me na solidão de meu jardim ao estudo da prece interior, seguindo exatamente os conselhos do estaroste. No começo, tudo parecia ir bem. Depois eu comecei a sentir um grande peso, preguiça, enjôo, um sono insuperável e os pensamentos caíram sobre mim como nuvens. Corri ao estaroste cheio de angústia e expus-lhe meu estado. Ele me recebeu com bondade e me disse:

- Bem amado irmão, esta é a luta que o mundo escuro trava contra você, pois não há nada que ele tema mais do que a prece do coração. Ele tenta torturá-lo e fazê-lo desgostar da oração. Mas o inimigo não age senão conforme a vontade e a permissão de Deus, na medida em que isto nos é necessário. Sem dúvida é preciso que sua humildade ainda seja posta à prova: ainda é cedo para que você atinja os umbrais do coração através de um zelo excessivo, porque você se arriscaria a cair na avareza espiritual. Vou ler-lhe o que diz a Filocalia a respeito.

O estaroste procurou nos ensinamentos do monge Nicéforo e leu:

- “Se, malgrado seus esforços, meu irmão, você não conseguir penetrar na região do coração, como eu recomendei, faça o que eu lhe digo e, com a ajuda de Deus, você encontrará aquilo que procura. Você sabe que a faculdade de locução de todo homem reside em seu peito... Retire então todos os pensamentos desta faculdade (você pode, se quiser) e dê a ela o Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim. Esforce-se para substituir por esta invocação interior todos os outros pensamentos e, com o tempo, isto certamente abrirá as portas do coração. Este é um fato provado pela experiência[15].”

- Veja o que ensinam os Padres neste caso, disse-me o estaroste. É por isso que você deve aceitar este mandamento com confiança e recitar tanto quanto puder a prece de Jesus. Aqui está um rosário com o qual você poderá fazer inicialmente três mil orações por dia. De pé, sentado, deitado ou caminhando, diga sem cessar: Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim!, lentamente e sem pressa. Recite exatamente três mil orações por dia sem acrescentar ou retirar nenhuma. É assim que você alcançará a atividade perpétua do coração.

Recebi com alegria estas palavras do estaroste e voltei para minha cabana. Fiz exata e fielmente o que ele me havia ensinado. Durante dois dias tive alguma dificuldade, mas depois a coisa se tornou tão fácil que quando eu não dizia a oração, sentia como que uma necessidade de retomá-la e ela fluía com facilidade e leveza sem nada que a impedisse do começo.

Contei isto ao estaroste, que me ordenou recitar seis mil orações por dia e disse:

- Não se preocupe e esforce-se apenas por manter fielmente o número de orações que eu lhe prescrevi: Deus será misericordioso com você.

Durante uma semana, eu permaneci em minha cabana solitária recitando diariamente minhas seis mil orações sem me preocupar com nada além e sem ter que lutar contra os pensamentos. Procurei apenas observar exatamente as ordens do estaroste. O que aconteceu? Eu me habituei de tal modo com a oração que, se eu me detivesse por um curto instante, sentia um vazio como se houvesse perdido alguma coisa; assim que retomava a oração, sentia-me outra vez leve e feliz. Se eu encontrasse com alguém, não sentia mais vontade de falar, eu queria apenas estar a sós e recitar a oração, tanto havia me habituado ao cabo de uma semana.

O estaroste, que não me via há dez dias, veio pessoalmente saber das novidades. Expliquei-lhe o que me acontecia. Depois de me escutar, ele disse:

- Você habituou-se à prece. Veja, agora você deve manter este hábito e fortalecê-lo: não perca tempo e, com ajuda de Deus, tome a resolução de rezar doze mil orações por dia; permaneça na solidão, levante-se um pouco mais cedo, durma um pouco mais tarde e venha ver-me duas vezes por mês.

Conformei-me às ordens do estaroste e, no primeiro dia, foi com muita dificuldade que cheguei às minhas doze mil orações, que terminei tarde da noite. No dia seguinte consegui com mais facilidade e com prazer. No começo eu senti fadiga, uma espécie de enrijecimento da língua e um ardor nos maxilares, mas sem nada de desagradável; depois senti um ligeiro incômodo no palato, em seguida no punho da mão esquerda que segurava o rosário, enquanto meu braço aquecia-se até o cotovelo, produzindo uma sensação deliciosa. E isto só fez incitar-me a recitar ainda melhor a prece. Assim, durante cinco dias eu executei fielmente as doze mil orações e, ao mesmo tempo em que adquiria o hábito, recebia o gosto e o agrado pela prece.

Numa bela manhã, eu fui como que despertado pela oração. Comecei a dizer minhas orações da manhã, mas minha língua se embaraçava e eu não tinha outro desejo do que o de recitar a prece de Jesus. Assim que a retomei, fiquei imediatamente feliz e meus lábios começaram a murmurá-la sem esforço. Passei todo dia na maior felicidade. Estava como que separado de tudo e sentia-me em outro mundo. Terminei sem dificuldade minhas doze mil orações antes do final do dia. Eu bem gostaria de continuar, mas não ousei ultrapassar a cifra indicada pelo estaroste. Nos dias que se seguiram, continuei a invocar o nome de Jesus Cristo, com facilidade e sem jamais me cansar.

Fui ver o estaroste e contei-lhe tudo isso em detalhe. Quando eu terminei, ele disse:

- Deus lhe deu o desejo de orar e a possibilidade de fazê-lo sem dificuldade. Este é um efeito natural produzido pelo exercício e pela constante aplicação, assim como um moinho a cuja mó imprimimos um movimento continua a girar por si mesmo se o deixarmos; mas, para que ele permaneça em movimento, é preciso engraxá-lo e dar-lhe vez por outra um novo impulso. Você pode ver agora as qualidades maravilhosas com que o Deus amigo dos homens dotou nossa própria natureza sensível; e você experimentou as sensações extraordinárias que podem nascer mesmo na alma pecadora, na natureza impura ainda não iluminada pela graça. Mas que grau de perfeição, de alegria e de enlevo atinge o homem quando o Senhor lhe concede revelar a prece espiritual espontânea e purificar sua alma das paixões! É um estado inexprimível e a revelação deste mistério é um antegozo da doçura celeste. Este é o dom que recebem aqueles que buscam o Senhor na simplicidade de um coração transbordante de amor!

Daqui para frente, eu permito a você recitar quantas orações quiser; experimente consagrar todo o tempo da vigília à prece e invoque o nome de Jesus sem mais contar, remetendo-se humildemente à vontade de Deus e esperando seu socorro; ele não o abandonará e guiará seu caminho.

Obedecendo a esta regra, passei todo o verão recitando sem cessar a prece de Jesus e senti-me inteiramente tranqüilo. Durante o sono, algumas vezes chegava a sonhar que recitava a oração. E durante o dia, quando me acontecia encontrar pessoas, elas me pareciam tão amáveis como se fossem de minha família. Mas eu não permanecia com elas. Meus pensamentos estavam apaziguados e eu não vivia senão com a prece; eu começava a inclinar meu espírito a escutar e de vez em quando meu coração sentia por si só um calor e uma grande alegria. Quando me ocorria entrar na igreja, o longo silêncio da solidão me parecia curto e já não me deixava como antes. A cabana solitária me parecia um esplêndido palácio e eu já não sabia como agradecer a Deus por ter enviado a mim, pobre pecador, um estaroste com ensinamentos tão benéficos.

Mas eu não pude desfrutar por muito tempo da orientação do meu bem amado e sábio estaroste – ele morreu no final do verão. Despedi-me dele com lágrimas e, agradecendo-o por seus ensinamentos paternais, pedi-lhe que me deixasse, como uma bênção, o rosário com o qual ele orava todos os dias. E assim fiquei só. O verão terminou, colhemos os frutos do jardim. Eu já não tinha onde morar. O camponês me deu dois rublos de prata como pagamento, encheu meu bornal com pão seco para a viagem e eu retomei minha vida errante; mas eu já não estava necessitado como antes. A invocação do nome de Jesus Cristo me alegrava ao longo da marcha e todos me tratavam com bondade; parecia que todos estavam dispostos a amar-me.

Um dia eu me perguntei sobre o que faria com os rublos que me dera o camponês. Para que me serviriam? Sim! Eu já não tinha o estaroste, nem ninguém para me guiar; portanto, iria adquirir um exemplar da Filocalia e com ela estudar a prece interior. Fiz o sinal da cruz e retomei o caminho rezando. Cheguei a uma capital provincial e comecei a procurar a Filocalia pelas lojas; encontrei uma, mas o comerciante queria três rublos por ela e eu não possuía senão dois; tentei negociar, mas ele não quis fazer nenhum abatimento; enfim, ele me disse:

- Vá a esta igreja, pergunte pelo sacristão; ele tem um velho livro como este, que talvez lhe ceda por dois rublos.

Lá fui eu e, com efeito, adquiri por dois rublos uma Filocalia bastante velha e estragada; fiquei felicíssimo. Acomodei-a como pude em um pano e a pus em meu bornal junto com a Bíblia.




***




Eis como vou agora, dizendo sem cessar a prece de Jesus, que me é mais cara e doce do que tudo no mundo. Às vezes, eu caminho mais de setenta verstas num dia e nem sinto que estou indo; eu sinto somente que recito a oração. Quando um frio violento me colhe, eu recito a prece com mais atenção e logo me sinto aquecido. Se a fome fica muito forte, invoco mais vezes ainda o nome de Jesus Cristo e já não me lembro dela. Se me sinto doente ou se minhas costas ou minhas pernas me supliciam, eu me concentro na prece e já não sinto dor. Quando alguém me ofende, eu não penso senão na benfazeja oração de Jesus; logo desaparece a cólera ou a pena e eu esqueço tudo. Eu me tornei um pouco bizarro. Não tenho necessidade de nada, nada me ocupa, nada do que é exterior me retém, eu gostaria de estar todo o tempo a sós. Como hábito, eu não tenho senão um cuidado: recitar a oração sem cessar, e, quando o faço, estou feliz. Deus sabe o que se passa dentro de mim. Naturalmente, tudo isso não passa de impressões sensíveis ou, como dizia o estaroste, do efeito da natureza e de um hábito adquirido; mas eu não ouso ainda dedicar-me ao estudo da prece espiritual no interior do coração, pois ainda sou demasiado indigno e bruto. Aguardo de Deus esta hora, esperando da prece de meu falecido estaroste. Assim, ainda não alcancei a prece espiritual do coração, automática e perpétua; mas, graças a Deus, compreendo agora claramente o que significam as palavras do Apóstolo que ouvira naquele dia: Orai sem cessar.



SEGUNDO RELATO



Tempos e tempos eu viajei por toda espécie de lugares, acompanhado da prece de Jesus, que me fortificava e me consolava por todos os caminhos, em todas as ocasiões e em todos os encontros. No final, pareceu-me que seria bom fazer uma parada para encontrar uma solidão mais completa e para estudar a Filocalia, que eu não podia ler senão no fim do dia ou durante o repouso do meio-dia; eu tinha um grande desejo de mergulhar nela longamente para extrair com fé a doutrina verdadeira da salvação da alma pela prece do coração. Infelizmente, para satisfazer este desejo, eu não poderia empregar-me em nenhum trabalho manual por ter perdido o uso do braço esquerdo desde a primeira infância; assim, diante da impossibilidade de me fixar em alguma parte, eu me dirigi para a Sibéria, a Santo Inocêncio de Irkutsk, pensando que, nas planícies e florestas de lá, eu encontraria mais silêncio e poderia dedicar-me mais comodamente à leitura e à oração. E para lá fui, recitando sem cessar a oração.

Ao cabo de algum tempo, senti que a prece passava por si só ao meu coração, ou seja que meu coração, batendo regularmente, punha-se de certo modo a recitar as santas palavras a cada batida, como por exemplo: um – Senhor; dois – Jesus; três – Cristo, e assim por diante. Parei de murmurar com os lábios e passei a escutar atentamente o que dizia meu coração; tentei também observar o interior do coração, lembrando como reveria ser agradável, conforme as palavras de meu falecido estaroste. Depois, senti uma ligeira dor no coração e em meu espírito um tal amor por Jesus Cristo que me pareceu que, se o visse, atirar-me-ia aos seus pés, agarrando-os e banhando-os com minhas lágrimas, agradecendo-lhe o consolo que nos dá com seu nome, em sua bondade e amor por sua criatura indigna e culpável.




Logo surgiu em meu coração um calor benfazejo que se espalhou por todo o meu peito. Isto levou-me especificamente a uma leitura atenta da Filocalia para nela verificar as sensações e estudar o desenvolvimento da prece interior do coração; sem este controle, eu temia cair na ilusão, tomar as ações da natureza como sendo as da graça e orgulhar-me por esta aquisição rápida da oração, segundo já me explicara meu falecido estaroste. Por isso passei a marchar à noite e passava os dias a ler a Filocalia sentado na floresta sob as árvores. Ah!, quantas coisas novas, profundas e ignoradas eu descobri nesta leitura! Com esta ocupação, eu gozava de uma beatitude mais perfeita do que tudo o que pudera imaginar até então. Sem dúvida, algumas passagens permaneciam incompreensíveis ao meu espírito limitado, mas os efeitos da prece do coração esclareciam-me aquilo que eu não entendia; ademais, eu via ocasionalmente em sonhos meu falecido estaroste que me explicava muitas das dificuldades enquanto mais e mais inclinava minha alma desentendida à humildade. Passei dois meses do verão nesta felicidade perfeita. Eu viajava sobretudo pelos bosques e pelos caminhos do campo; quando chegava a uma vila, pedia um saco de pão, um dedo de sal, enchia de água o cantil e partia para mais cem verstas.




O PEREGRINO É ATACADO POR LADRÕES[16]




Sem dúvida devido aos pecados de minha alma endurecida, ou para meu progresso espiritual, as tentações apareceram no final do verão. Eis como aconteceu: numa tarde em que eu havia acabado de chegar à estrada principal, encontrei dois homens que tinham jeito de soldados; eles me pediram dinheiro. Quando eu lhes disse que não possuía sequer um sou[17], eles não quiseram acreditar e gritaram brutalmente:

- Você mente! Os peregrinos juntam muito dinheiro!

Um deles acrescentou:

- Inútil continuar falando com ele!, e bateu-me na testa com seu bastão; eu caí inconsciente.

Não sei por quanto tempo fiquei assim, mas quando voltei a mim, vi que estava na floresta próximo da estrada; eu estava todo arrebentado e meu saco havia desaparecido; não restavam mais do que as pontas do cordão que o atava. Graças a Deus, eles não haviam levado meu passaporte que eu guardava em minha boina para poder mostrá-lo rapidamente quando fosse necessário. Pondo-me em pé, chorei amargamente não tanto por causa das dores, mas pelos meus livros, minha Bíblia e minha Filocalia, que estavam no saco roubado. Durante todo o dia e por toda a noite eu me afligi e chorei. Aonde estaria minha Bíblia, que eu lia desde criança e que estava sempre comigo? Aonde minhaFilocalia, da qual eu tirava ensinamento e consolo? Infelizmente, eu havia perdido o único tesouro da minha vida, sem que dele tivesse me saciado. Teria sido melhor morrer do que viver assim sem alimento espiritual. Jamais eu poderia encontrá-los novamente.

Durante dois dias eu mal pude caminhar, tão aflito estava; no terceiro dia, eu tombei no fim de minhas forças perto de uma moita e adormeci. No sonho, eu me vi a sós, na cela de meu estaroste e chorei-lhe minha angústia. Depois de haver-me consolado, o estaroste me disse:

- Que isto lhe seja uma lição sobre o desligamento das coisas terrestres, para que você vá mais livremente para o céu. Esta prova lhe foi enviada para que você não caia na volúpia espiritual. Deus quer que o cristão renuncie à sua vontade própria e a toda ligação com ela, a fim de se remeter inteiramente à vontade divina. Tudo o que ele faz é para o bem e a salvação do homem. Ele quer que todos sejam salvos[18]. Então, recobre a coragem e creia que com a tentação, o Senhor prepara também uma saída feliz[19]. Logo você receberá um consolo maior do que toda a sua pena.

Com estas palavras eu despertei, sentindo em mim novas forças, e em minha alma uma aurora e uma calma novas. Seja feita a vontade do Senhor!, disse para mim mesmo. Levantei-me, persignei-me e parti. A prece agitava meu coração novamente como antes e durante três dias eu caminhei tranqüilamente.

Subitamente, encontrei no caminho um grupo de condenados que era conduzido sob escolta. Aproximando-me, percebi os dois homens que me haviam assaltado e, como eles caminhavam na lateral da coluna, atirei-me aos seus pés e supliquei que me dissessem aonde estavam meus livros. No começo fizeram cara de que não me conheciam, mas depois um deles me disse:

- Se você nos der qualquer coisa, nós lhe diremos onde estão seus livros. Precisamos de um rublo de prata.

Eu jurei que lhes traria, de qualquer jeito, ainda que tivesse que mendigar para tanto.

- Tomem, se quiserem, fiquem com meu passaporte como garantia.

Eles me disseram que meus livros estavam nas carroças com outros objetos roubados que lhes tinham sido retirados.

- Como posso obtê-los?

- Pergunte ao comandante da escolta.

Corri ao comandante e lhe expliquei a coisa em detalhe. Durante a conversa, ele perguntou-me se eu sabia ler a Bíblia.

- Não apenas sei ler, disse eu, como sei escrever; você verá na Bíblia uma inscrição que mostra que ela me pertence; e aqui está no passaporte meu nome e sobrenome.

O capitão me disse:

- Estes bandidos são desertores, eles viviam em uma cabana e pilhavam os passantes. Um cocheiro precavido deteve-os ontem, quando tentavam roubar-lhe a charrete. O melhor que posso fazer é devolver-lhe seus livros, se estiverem aí; mas é preciso que você nos acompanhe até o próximo posto; fica a quatro verstas e eu não posso parar o comboio apenas por sua causa.

Eu caminhei alegremente ao lado do cavalo do capitão e conversei com ele. Vi que era um homem honesto e bom e que já não era jovem. Ele perguntou-me quem eu era, de onde vinha e para onde ia. Eu lhe respondi com toda a sinceridade; e assim chegamos ao posto. Ele foi procurar meus livros e os trouxe para mim, dizendo:

- Aonde vai você agora? Já é noite; você deve permanecer comigo.

Eu fiquei. Estava tão feliz por haver reencontrado meus livros que já não sabia como agradecer a Deus; eu os apertava contra meu coração até me doerem os braços. Lágrimas de felicidade escorriam dos meus olhos, e meu coração batia com deliciosa alegria.

Vendo-me, o capitão me disse:

- Vejo que você adora ler a Bíblia.

Em minha alegria, eu não conseguia responder-lhe uma palavra sequer. Eu não fazia senão chorar. Ele prosseguiu:

- Também eu, meu irmão, leio diariamente o Evangelho com atenção. – Buscando na algibeira do uniforme, ele tirou um pequeno Evangelho de Kiev com a capa em prata – Sente-se e eu lhe contarei como adquiri este hábito. Alô! Sirvam-nos algo para comer!




HISTÓRIA DO CAPITÃO




Nós nos sentamos à mesa. O capitão começou seu relato:

- Desde minha juventude, eu sempre servi no exército, mas nunca em guarnição. Eu conhecia bem o serviço e meus chefes me consideravam como um porta-bandeira modelo. Mas eu era jovem e meus amigos também; para minha infelicidade, aprendi a beber e me entreguei à bebida de tal modo que me tornei doente; quando eu não bebia, era um excelente oficial, mas ao menor copo, ficava seis semanas no leito. Durante longo tempo suportaram-me, mas, ao final, por haver insultado um superior depois de beber, fui degradado e condenado a servir três anos numa guarnição; se eu não abandonasse a bebida, estava ameaçado de castigos os mais severos. Nesta miserável condição, eu tentei me controlar, tentei curar-me, mas não pude desembaraçar-me de minha paixão e foi decidido que eu seria enviado aos batalhões de disciplina. Quando eu soube disto, já não sabia o que fazer.

Um dia, continuou ele, estava sentado em meu quarto pensando nessas coisas. Eis que chegou um monge que recolhia donativos para uma igreja. Cada um dava o que podia. Chegando-se a mim, ele me perguntou:

- Porque está tão triste?

Falei um pouco com ele e lhe contei minha infelicidade. O monge, compadecido de minha situação, me disse:

- A mesma coisa aconteceu com meu próprio irmão, e eis como ele se libertou: seu pai espiritual lhe deu um Evangelho e ordenou-lhe que lesse um capítulo, cada vez que tivesse vontade de beber; e, se a vontade voltasse, ele deveria ler o capítulo seguinte. Meu irmão pôs em prática este conselho e, ao cabo de pouco tempo, a paixão pela bebida deixou-o. Já se vão quinze anos que ele não prova uma bebida forte. Faça o mesmo, e você verá logo como funciona. Eu tenho um Evangelho, se você quiser eu o darei a você.

Diante destas palavras, eu lhe disse:

- Que quer você que eu faça com seu Evangelho, quando nem meus esforços, nem os meios médicos puderam deter-me? – Mas eu falava assim porque nunca havia lido o Evangelho.

- Não diga isso, replicou o monge. Eu lhe asseguro que você achará grande proveito.

No dia seguinte, com efeito, o monge me trouxe este Evangelho. Eu o abri, olhei, li algumas frases e lhe disse:

- Eu não o quero; não compreendo bem o que está aí; não tenho o hábito de ler os caracteres da igreja[20].

O monge continuou a exortar-me, dizendo que nas próprias palavras do Evangelho reside uma força benéfica; pois foi o próprio Deus que ditou as palavras que achamos impressas nele.

- Não tem importância se você não compreende, apenas leia com atenção. Um santo disse: Se você não compreende a palavra de Deus, os diabos compreendem o que você lê e eles tremem[21]; e é certo que o desejo de beber é claramente obra dos demônios. Eu lhe direi mais isto: João Crisóstomo escreve que mesmo o lugar em que é guardado o Evangelho espanta os espíritos das trevas e forma um obstáculo às suas intrigas.

Não me lembro bem – acho que dei alguma coisa ao monge – mas peguei seu Evangelho e o coloquei na mala com minhas coisas; e esqueci-me por completo dele. Depois de algum tempo, chegou a hora de beber; eu estava louco de vontade e abri minha mala para pegar dinheiro e ir ao cabaré. O Evangelho surgiu diante de meus olhos e, lembrando-me subitamente de tudo o que me havia dito o monge, abri-o e comecei a ler o primeiro capítulo de Mateus. Li quase até o final sem compreender nada; mas eu me lembrei do que havia dito o monge: não tem importância se você não compreender, apenas leia com atenção. Pois bem, disse eu, tentemos mais um capítulo. A leitura já me pareceu mais clara. Vejamos ainda um terceiro: mal havia começado a ler, soaram badaladas: era a chamada para a noite. Já não havia como deixar a caserna; assim, permaneci sem beber.

Na manhã seguinte, quando ia sair para procurar a água da vida, eu disse para mim mesmo: e se eu lesse um capítulo do Evangelho? Vejamos. Eu o li e já não me movi. Outra vez, em que tive desejo do álcool, pus-me a ler e me senti consolado. Assim fui me sentindo confortado e, a cada assalto do desejo, eu me agarrava a um capítulo do Evangelho. Quanto mais tempo passava, melhor a coisa ia. Quando terminei os quatro Evangelhos, minha paixão pelo álcool havia desaparecido completamente: eu havia me tornado indiferente a seu respeito. E já lá se vão vinte anos que eu não toco em nenhuma bebida forte.

Todos ficaram espantados com minha mudança; depois de três anos, fui readmitido ao quadro dos oficiais, subi os graus sucessivos e tornei-me capitão. Casei-me, tendo encontrado uma excelente esposa; conseguimos juntar alguns bens, e hoje, graças a Deus, tudo vai bem; nós ajudamos os pobres como podemos e recebemos os peregrinos. Tenho um filho que já é oficial, um bravo rapaz.

Assim, veja você, após minha cura, eu me prometi ler a cada dia da minha vida, até meu último dia, um dos quatro Evangelhos inteiro, sem admitir nenhum impedimento. É o que faço. Quando estou por demais cansado do trabalho e fatigado, eu me deito e peço à minha esposa ou ao meu filho que leiam o Evangelho junto a mim, de modo a observar minha regra. Em testemunho de reconhecimento e para glória de Deus, mandei cobrir este Evangelho com prata maciça e o trago sempre junto ao meu peito.

Eu escutei com prazer este relato do capitão e lhe disse:

- Conheço um caso parecido: em nossa vila havia um excelente operário, muito versado em seu ofício. Mas, para sua desgraça, ele bebia, e muito. Um homem piedoso aconselhou-o a recitar trinta e três preces de Jesus em honra da Santíssima Trindade e conforme aos anos da vida terrestre de Jesus Cristo, cada vez que tivesse vontade de beber. È o que ele fez, e logo deixou de beber. E não é tudo: depois de três anos, ele entrou para um mosteiro.

- E o que é melhor, perguntou o capitão, a prece de Jesus ou o Evangelho?

- Tudo é uma só coisa, respondi-lhe. O Evangelho é como a prece de Jesus: pois o nome divino de Jesus Cristo encerra em si todas as verdades evangélicas. Os Padres dizem que a prece de Jesus é o resumo de todo o Evangelho.

A seguir, dissemos nossas orações; logo o capitão começou a ler desde o início o Evangelho de são Marcos e eu o escutei enquanto fazia a prece em meu coração. O capitão terminou sua leitura às duas horas e nós fomos nos deitar.

Como hábito, costumo acordar cedo pela manhã; todos ainda dormiam; o dia mal começara quando mergulhei em minha querida. Com que alegria a abri! Parecia-me haver reencontrado meu próprio pai depois de uma longa ausência ou um amigo ressuscitado dos mortos. Eu a abraçava e agradecia a Deus por me havê-la devolvido; comecei a ler Teolepto de Filadélfia na segunda parte da Filocalia. Fiquei espantado em ver que ele propõe que nos dediquemos a três ordens de atividades simultaneamente: sentado à mesa, diz ele, dê ao seu corpo o alimento, ao seu ouvido a leitura e ao seu espírito a oração. Mas a lembrança do agradável jantar do dia anterior explicou-me na prática este pensamento. Foi então que eu compreendi a diferença entre coração e espírito.

Quando o capitão despertou, fui agradecer-lhe a bondade e dizer-lhe adeus. Ele me deu chá, um rublo de prata e nos separamos. Retomei meu caminho todo alegre.

Depois de uma versta andada, lembrei-me de que prometera ao soldados um rublo, que eu agora possuía. Deveria eu entregá-lo ou não? Por um lado, eu me dizia, eles o atacaram e roubaram, e agora já nada podem fazer, porque estão detidos. Mas por outro lado, lembre-se do que está escrito na Bíblia: Se teu inimigo tem fome, dê-lhe de comer[22]. E o próprio Jesus Cristo disse: Amai vossos inimigos[23], e também: Se alguém te citar em justiça para tirar-te a túnica, cede-lhe também a capa[24]. Assim persuadido, voltei sobre meus passos e cheguei ao posto no momento em que o comboio estava se formando para partir; corri até os dois malfeitores e lhes deslizei meu rublo entre as mãos dizendo:

- Rezem e façam penitência; Jesus Cristo é amigo dos homens. Ele não os abandonará!

Com estas palavras afastei-me e retomei meu caminho em outra direção.



SOLIDÃO




Após haver feito cinqüenta verstas pela estrada principal, tomei por caminhos pela campo, mais solitários e próprios à leitura. Por muito tempo, caminhei por bosques; de tempos em tempos, passava por alguma vila.

Muitas vezes eu me instalava durante todo o dia na floresta para ler a Filocalia; extraía dela conhecimentos espantosos e profundos. Meu coração estava inflamado pelo desejo de unir-se a Deus pela prece interior que eu me esforçava por estudar e controlar com aFilocalia; ao mesmo tempo, eu estava triste por não encontrar um abrigo aonde pudesse dedicar-me à leitura em paz e sem interrupção.

Por esta época, eu também lia a Bíblia e senti que começava a compreendê-la melhor; encontrava nela cada vez menos passagens obscuras. Os Padres têm razão em dizer que a Filocalia é a chave que descobre os mistérios encerrados na Bíblia. Sob sua direção, eu comecei a compreender o sentido oculto da Palavra de Deus; eu descobri o que significam o homem interior no fundo do coração[25], a oração verdadeira, a adoração em espírito[26], o Reino em nosso interior[27], a intercessão do Espírito Santo[28]; eu compreendi o sentido destas palavras: permanecei em mim[29], dê-me seu coração[30], estar revestido do Cristo[31], as bodas do Espírito em nossos corações[32],a invocação Abba Pai[33] e muitas outras. Quando ao mesmo tempo eu orava do fundo do coração, tudo o que me cercava surgia-me sob um aspecto arrebatador: as árvores, as plantas, os pássaros, a terra, o ar, a luz, tudo parecia dizer-me só existirem para o homem, testemunharem o amor de Deus pelo homem; tudo orava, tudo cantava a glória de Deus! Eu compreendi assim o que a Filocalia chama “o conhecimento da linguagem da criação”, e vi como é possível conversar com as criaturas de Deus.




HISTÓRIA DO GUARDA FLORESTAL




Durante muito tempo viajei assim. Por fim, cheguei a uma região tão afastada que fiquei três dias sem ver sequer um vilarejo. Meu pão havia terminado e eu me perguntava com inquietação como não morrer de fome. Mas comecei a orar em meu coração e meu abatimento desapareceu; coloquei-me à disposição de Deus e tornei-me alegre e tranqüilo. Eu ia avançando um pouco mais pela estrada através de uma imensa floresta quando percebi diante de mim um cão de guarda que saía da mata; eu o chamei e ele veio, todo gentil, receber carinho. Alegrei-me e pensei: Eis a bondade de Deus! Certamente haverá um rebanho nesta floresta e este deve ser o cachorro do pastor, ou talvez haja um caçador perseguindo sua caça por aqui; de qualquer modo, poderei pedir um pouco de pão, pois já se passam dois dias sem que eu coma nada, ou então informar-me da existência de alguma vila nas imediações. O cão, depois de dar algumas voltas ao meu redor, vendo que não havia nada para comer, meteu-se na floresta pelo mesmo caminho de onde viera. Eu o segui; ao cabo de duzentos metros, percebi no meio das árvores o cachorro instalado em um abrigo, latindo só com a cabeça de fora.

Vi aproximar-se por entre as árvores um homem magro e pálido, de meia idade. Ele perguntou-me como chegara até ali. Eu lhe perguntei o que fazia num lugar tão ermo. Trocamos algumas palavras amigáveis. O homem convidou-me a entrar em sua cabana e explicou-me ser guarda florestal, incumbido de vigiar esta floresta que deveria ser cortada. Ele me ofereceu pão e sal, e começamos uma conversação.

- Eu invejo esta vida solitária que você leva, disse-lhe; não é como eu, sempre errante e em contato com todo o mundo.

- Se você quiser, respondeu-me ele, pode muito bem viver aqui; existe mais adiante uma velha cabana, que servia ao antigo guarda; está um pouco derrubada, mas serve para o verão. Você possui um passaporte. Temos pão suficiente para nós dois, que me trazem da vila a cada semana; e aqui há um arroio que nunca seca. Quanto a mim, irmão, já faz dez anos que não como outra coisa que não seja pão, e não bebo senão água. Somente no outono, quando os trabalhos no campo terminarem, virão duzentos homens para o corte; já não terei o que fazer aqui, e não me permitirão permanecer.

Diante destas palavras, senti tamanha alegria que quase me atirei aos seus pés. Não sabia como agradecer a Deus sua bondade para comigo.

Tudo o que eu desejava e pelo quê tanto me inquietava, recebia agora de repente. Faltavam ainda quatro meses para o meio do outono, e eu poderia, durante este tempo, aproveitar o silêncio e a paz para estudar com a ajuda da Filocalia a prece perpétua e interior do coração. Assim resolvi instalar-me na cabana indicada. Continuamos a falar e este irmão simples contou-me sua vida e suas idéias.

- Em minha aldeia, disse ele, eu não era o último; eu tinha um ofício, tingia panos em vermelho e azul; viva sossegado, mas não sem pecados: eu enganava a clientela e jurava por qualquer coisa; eu era grosseiro, beberrão e brigador.

Nesta aldeia, continuou, havia um velho mestre do coro que possuía um livro antigo, muito antigo, sobre o Juízo final[34]. Ele vinha freqüentemente lê-lo para os fiéis ortodoxos, que lhe davam algum dinheiro por isso; ele vinha a mim, também. Na maior parte das vezes, eu lhe dava dez sous e um copo de água da vida e ele permanecia lendo até o canto do galo. Uma vez em que eu trabalhava ouvindo-o, ele leu uma passagem sobre as torturas do inferno e sobre a ressurreição dos mortos, como Deus virá julgar, como os anjos soprarão as trombetas, quanto fogo e poeira haverá e como os vermes devorarão os pecadores. Subitamente, senti um terror apavorante e disse a mim mesmo: Não escaparei aos tormentos! Tenho que começar a salvar minha alma e talvez eu chegue a libertar-me de meus pecados. Refleti longamente a respeito e decidi-me a abandonar meu ofício; vendi minha casa e, como morava só, fiz-me guarda florestal, não pedindo mais salário do que apenas pão, algo com que me cobrir e velas para iluminar durante minhas orações.

Faz mais de dez anos que vivo aqui. Não como mais do que uma vez por dia e somente pão e água. Cada noite, levanto-me ao primeiro canto do galo e até que o dia apareça faço minhas genuflexões prostrando-me por terra; enquanto rezo, acendo sete velas diante das imagens. Durante o dia, enquanto percorro a floresta, carrego sobre a pele sessenta libras[35] de correntes. Não juro mais, nem bebo nem cerveja nem álcool, não discuto com ninguém; mulheres e raparigas, não sei o que é isto.

De início, eu estava bem contente em viver assim, mas, contra minha vontade, acabei assaltado por dúvidas e reflexões que não consigo afastar. Deus sabe se conseguirei me livrar de meus pecados, mas esta vida é bem dura. E depois, seria verdade o que dizia o livro? Como pode o homem ressuscitar? Aqueles que morreram há cem anos ou mais, sequer sua poeira subsiste. E quem pode saber se há ou não um inferno? Em todo caso, ninguém jamais voltou do outro mundo; quando o homem morre, ele apodrece e não deixa nem traço. Talvez os popes[36] ou os funcionários que escreveram este livro o tenham feito para nos assustar, a nós, os imbecis, para que sejamos submissos. Assim, vivemos penosamente, sem consolo nesta terra, e no outro mundo não há mais nada! Então, para que serve tudo isso? Não valeria mais ter ao menos um pouquinho de bom tempo, depois de tudo? Estas idéias me perseguem, acrescentou ele, e receio ter de retomar meu antigo ofício.

Eu estava cheio de piedade por ele e me dizia: achamos que apenas os sábios e os intelectuais se tornam livres pensadores e não crêem mais em nada, mas nossos irmãos, cidadãos simples, como são capazes de fabricar a descrença! Certamente o mundo escuro está perto de todos e ataca talvez mais facilmente os mais simples. É preciso raciocinar tanto quanto possível e fortificarmo-nos contra o inimigo pela Palavra de Deus.

Então, para sustentar um pouco este irmão e reafirmar sua fé, tirei de meu saco a Filocalia e a abri no capítulo 109 do bem-aventurado Hesíquio. Eu o li para ele e expliquei-lhe que não se deve evitar o pecado apenas pelo medo do castigo, pois a alma só pode libertar-se dos pensamentos culpáveis pela vigilância do espírito e a pureza do coração. Tudo isso se adquire pela prece interior. Se alguém se engaja na via ascética, não somente por medo das torturas do inferno, mas até pelo desejo do reino celeste, acrescentei, os Padres comparam sua ação à de um mercenário. Eles dizem que o medo dos tormentos é o caminho do escravo e que o desejo de recompensa é o caminho do mercenário. Mas Deus quer que cheguemos a ele como filhos: ele quer que o amor e o zelo nos levem a nos conduzir dignamente, e que usufruamos da união perfeita com ele na alma e no coração[37].

- Você pode esgotar-se, impor-se provações e os trabalhos físicos mais duros; se você não tiver sempre Deus no espírito e a prece de Jesus no coração, jamais estará ao abrigo dos maus pensamentos; você estará sempre disposto a pecar na primeira ocasião. Coloquemo-nos portanto, irmão, a recitar sem cessar a prece de Jesus; nesta solidão é bem fácil; logo você verá o proveito. As idéias ímpias desaparecerão, a fé e o amor por Jesus Cristo revelar-se-ão a você; você compreenderá como os mortos podem ressuscitar e o Juízo final lhe surgirá como ele é verdadeiramente. E em seu coração haverá tanta leveza e felicidade que você ficará espantado; você não ficará mais desanimado ou confuso por causa de sua vida de penitência!

A seguir eu lhe expliquei o melhor que pude como recitar a prece de Jesus segundo o mandamento divino e os ensinamentos dos Padres. Ele pareceu não ter mais tantas dúvidas e sua perturbação diminuiu. Então, separando-me dele, entrei na velha cabana que ele me havia indicado.



TRABALHOS ESPIRITUAIS




Meu Deus! Quanta felicidade, quanta consolação, que arrebatamento senti ao transpor os umbrais deste refúgio, ou melhor dizendo deste túmulo; a cabana pareceu-me um palácio cheio de alegria. Com lágrimas de felicidade agradeci a Deus e disse a mim mesmo: Pois bem, agora, nesta calma e nesta paz, é preciso trabalhar seriamente e orar ao Senhor para que me esclareça o espírito. Assim comecei a ler a Filocalia do princípio ao fim com a maior atenção. Em pouco tempo eu havia terminado a leitura e me dei conta da sabedoria, da santidade e da profundidade deste livro. Mas como nele eram tratados diversos assuntos, eu não conseguia entender tudo nem concentrar as forças do meu espírito apenas sobre o ensinamento da oração interior a fim de chegar à prece espontânea e perpétua no interior do coração. Mas eu tinha grande necessidade disto, conforme o mandamento divino transmitido pelo Apóstolo: Buscai os dons mais perfeitos[38], e também: Não extingais o espírito[39]. Por mais que eu refletisse, não sabia o que fazer. Eu não tinha inteligência bastante nem compreensão, nem ninguém para me ajudar. Decidi incomodar tanto o Senhor à força de orações que talvez ele se resolvesse a esclarecer meu espírito. Passei assim todo um dia rezando sem me deter um instante; meus pensamentos apaziguaram-se e eu adormeci; então vi-me em sonhos na cela do meu estaroste e ele explicou-me a Filocalia dizendo: “Este livro santo está cheio de uma grande sabedoria. É um tesouro misterioso de ensinamentos sobre os desígnios secretos de Deus. Ele não é acessível a qualquer um em qualquer parte; mas ele contém máximas que estão ao alcance de cada um, profundas para os espíritos profundos, simples para os simples. É por isso que vocês, pessoas simples, não devem ler os livros dos Padres na seqüência tal como estão colocados aqui. Esta é uma disposição conforme a teologia; mas aquele que não é instruído e que deseja aprender a prece interior na Filocalia deve praticar a seguinte ordem: em primeiro lugar, ler o livro do monge Nicéforo (na segunda parte); depois o livro de Gregório o Sinaíta inteiro, salvo os capítulos curtos; depois as três formas da prece de Simeão o Novo Teólogo e seu tratado sobre a Fé; depois o livro de Calixto e Inácio. Nesses textos, poderá ser encontrado o ensinamento completo da prece interior do coração, ao alcance de todos. Se você quiser um texto ainda mais compreensível, tome na quarta parte o modelo abreviado da prece de Calixto, patriarca de Constantinopla.”

E eu, praticamente segurando a Filocalia em minhas mãos, buscava a passagem sem encontrá-la. Virando algumas páginas, o estaroste me disse: “Veja, vou marcá-la para você!”, e tomando um pedaço de carvão no chão, fez um risco do lado da página na qual se achava a passagem indicada. Eu escutei todas estas palavras do estaroste e tentava fixá-las em minha memória com firmeza e em todos os detalhes.

Despertei e, como ainda não era dia, permaneci deitado, lembrando-me de tudo o que havia visto em sonho e repetindo o que me havia dito o estaroste. Depois pus-me a refletir: só Deus sabe se é a alma de meu estaroste que me aparece assim ou se são minhas próprias idéias que tomam esta forma, por eu pensar tanto e com tanta freqüência na Filocalia e no estaroste! Levantei-me com esta incerteza no espírito; começava a clarear. E, subitamente, vi sobre a pedra que me servia de mesa a Filocaliaaberta na página indicada pelo estaroste e marcada com um traço de carvão, exatamente como em meu sonho; o próprio carvão estava ainda ao lado do livro. Fiquei assustado, porque lembrei-me que o livro não estava lá na véspera; eu o havia colocado junto a mim, fechado, antes de dormir e lembrava-me de que não havia nenhuma marca naquela página. Este evento deu-me fé na aparição e certificou-me da santidade da memória de meu estaroste. Assim, recomecei a ler a Filocalia na ordem indicada. Li uma vez e mais uma, e esta leitura inflamou meu zelo e meu desejo de provar em ações aquilo que havia lido. Descobri claramente o sentido da oração interior, os meios de chegar a ela e seus efeitos; compreendi como ela regozija a alma e o coração e como podemos distinguir se esta alegria vem de Deus, da natureza ou da ilusão.

Antes de mais nada, procurei descobrir o lugar do coração, segundo o ensinamento de são Simeão o Novo Teólogo. Fechando os olhos, dirigi o olhar ao meu coração, tentando figurá-lo tal como é na parte esquerda do peito e escutando cuidadosamente suas batidas. Comecei praticando este exercício por meia hora, várias vezes ao dia; de início, eu não via mais do que trevas; logo meu coração apareceu e eu senti seu movimento profundo; depois logrei introduzir em meu coração a prece de Jesus e fazê-la sair no ritmo da respiração, conforme os ensinamentos de são Gregório o Sinaíta, de Calixto e Inácio: para tanto, vigiando o coração com o espírito, eu inspirava o ar e o guardava no peito, dizendo: Senhor Jesus Cristo, e expirava dizendo: tem piedade de mim. Exercitei-me a princípio por uma ou duas horas, depois apliquei-me cada vez mais amiúde a esta ocupação e, por fim, passava nela quase todo o dia. Quando me sentia sonolento, fatigado ou inquieto, imediatamente lia na Filocalia as passagens que tratavam da atividade do coração, e o desejo e o zelo pela prece renasciam em mim. Ao cabo de três semanas, senti uma dor no coração, depois um torpor agradável e um sentimento de consolação e de paz. Isto me deu mais forças para exercitar-me na prece, à qual se ligavam todos os meus pensamentos, e comecei a sentir uma grande alegria. A partir deste momento, experimentei de tempos em tempos diversas sensações novas no coração e no espírito. às vezes acontecia uma espécie de efervescência em meu coração e uma leveza, uma liberdade, uma alegria tão grande, que eu me sentia transformado e em êxtase. Às vezes, eu sentia um amor ardente por Jesus Cristo e por toda a criação divina. Às vezes minhas lágrimas corriam sozinhas em reconhecimento ao Senhor que teve compaixão de mim, pecador endurecido. Outras vezes meu espírito limitado iluminava-se a tal ponto que eu compreendia com clareza coisas que antes não era capaz sequer de conceber. Às vezes o doce calor de meu coração se espalhava por todo o meu ser e eu sentia com emoção a presença indescritível do Senhor. Outras vezes eu sentia uma felicidade intensa e profunda à invocação do nome de Jesus Cristo e compreendia o que significam as palavras: O Reino de Deus está no vosso interior[40].

Em meio a estas consolações benfazejas, eu observei que os efeitos da prece do coração aparecem sob três formas: no espírito, nos sentidos e na inteligência. No espírito, por exemplo, a doçura do amor de Deus, a calma interior, o arrebatamento do espírito, a pureza dos pensamentos, o esplendor da idéia de Deus; nos sentidos, o agradável calor no coração, a plenitude da doçura nos membros, a efervescência da felicidade no coração, a leveza, o vigor da vida, a insensibilidade às doenças e aos sofrimentos; na inteligência, a iluminação da razão, a compreensão da sagrada Escritura, o conhecimento da linguagem da Criação, o desligamento dos cuidados vãos, a consciência da doçura da vida interior, a certeza da proximidade de Deus e de seu amor por todos nós[41].

Depois de cinco solitários meses passados nestes trabalhos e nesta alegria, eu havia me habituado de tal maneira à prece do coração que a praticava sem cessar e enfim sentia que ela se cumpria sozinha sem nenhuma atividade de minha parte; ela brotava em meu espírito e no meu coração não apenas no estado de vigília, mas mesmo durante o sono, e não se interrompia nem por um segundo. Minha alma agradecia ao Senhor e meu coração exultava numa felicidade incessante.

Chegou o tempo do corte, chegaram os lenhadores e eu tive que deixar minha moradia silenciosa. Tendo agradecido ao guarda florestal e recitado uma oração, beijei este pedaço de terra no qual o Senhor quis por bem manifestar-me sua bondade, coloquei meu saco sobre os ombros e parti. Marchei por muito tempo e por muitas regiões até chegar a Irkutsk. A prece espontânea do coração foi meu consolo ao longo de todo o caminho, jamais deixando de me alegrar, embora em diferentes graus; em nenhum momento e em nenhum lugar ela me cansou, e nada pode fazê-la diminuir. Se eu trabalhava, a prece agia por si mesma em meu coração e meu trabalho andava mais depressa; se eu escutava ou lia algo com atenção, a oração não cessava, e eu sentia ao mesmo tempo uma e outra coisa como se tivesse me desdobrado e em meu corpo houvesse duas almas. Meu Deus! Como o homem é misterioso!




O ATAQUE DO LOBO




Ó Senhor, quão variadas são as vossas obras! Feitas, todas, com sabedoria, a terra está cheia das coisas que criastes[42]. Encontrei em meu caminho muitos casos extraordinários. Se tivesse que contá-los todos, não terminaria antes de muitos dias. Vejam um exemplo: numa tarde de inverno eu atravessava sozinho uma floresta, tencionando alcançar um lugarejo que antevia a duas verstas para descansar. De repente um grande lobo saltou sobre mim. Eu tinha nas mãos o rosário de lã[43] de meu estaroste (eu o tinha sempre comigo). Eu empurrei o lobo com o rosário. E acreditem, o rosário escapou-me das mãos e enrolou-se no pescoço do animal. O lobo recuou e, saltando no meio dos arbustos, enroscou as patas traseiras nos espinhos, enquanto o rosário prendia-se ao ramo de uma árvore morta; o lobo debatia-se com todas as forças, mas não conseguia livrar-se do rosário que apertava sua garganta. Persignei-me com fé e avancei para soltar o lobo; era principalmente porque eu temia que ele arrancasse o rosário e fugisse levando consigo este objeto tão precioso. Com dificuldade aproximei-me e já tinha a mão no rosário quando o lobo rompeu-o e salvou-se sem mais delongas. Assim, agradecendo ao Senhor e louvando a memória do meu bem-aventurado estaroste, cheguei sem mais problemas à vila; dirigi-me ao albergue e pedi para pernoitar. Entrei na habitação. Dois viajantes estavam sentados numa mesa num canto, um mais idoso, outro maduro e corpulento, ambos aparentemente pessoas de boa condição. Eles bebiam chá. Perguntei quem eram ao camponês que guardava seus cavalos. Ele explicou-me que o mais velho era instrutor e o outro assistente do juiz de paz: todos os dois de origem nobre, e ele os estava conduzindo ao mercado que ficava a vinte verstas dali.

Depois de ter descansado um pouco, pedi à hospedeira agulha e linha. Aproximei-me do candeeiro e comecei a remendar meu rosário. O assistente de juiz de paz lançou-me um olhar e disse:

- Você deve ter dado muitas voltas para conseguir esgarçar um rosário!

- Não fui eu que o estraguei, mas um lobo...

- Ora vejam, os lobos também fazem suas preces, respondeu o assistente rindo.

Eu lhe contei o ocorrido com detalhes e expliquei o quanto este rosário era precioso para mim. O assistente voltou a rir e disse:

- Para vocês, crédulos, sempre existem milagres! O que há de misterioso nisso? Você simplesmente atirou-lhe uma coisa, ele assustou-se e fugiu; os cachorros e os lobos sentem medo disto, e enroscar as patas no mato não é difícil; não é preciso acreditar que tudo o que acontece neste mundo seja por milagre.

O instrutor começou então a discutir com ele:

- Não fale assim, meu senhor! Você não é versado nestas questões... Quanto a mim, vejo na história deste cidadão um duplo mistério, sensível e espiritual...

- Como?, perguntou o assistente.

- Veja: sem ter uma instrução muito exigente, você certamente estudou a história santa por meio de perguntas e respostas, como nos livros escolares. Você se lembra que quando o primeiro homem, Adão, estava ainda em estado de inocência, todos os animais lhe eram submissos; eles se aproximavam dele com respeito e ele lhes dava os nomes. O estaroste, a quem pertencera este rosário, era um santo; e o que é a santidade, senão a ressurreição no homem pecador do estado de inocência do primeiro homem, graças aos esforços e às virtudes? A alma santifica o corpo. O rosário estava todo o tempo nas mãos de um santo; portanto, pelo contato constante com suas mãos e com seu influxo, este objeto foi penetrado por uma força santa, a força do estado de inocência do primeiro homem. Este é o mistério da natureza espiritual!... Esta força é pressentida naturalmente por todos os animais e sobretudo pelo olfato: pois o nariz é o principal órgão dos sentidos dos animais. Este é o mistério da natureza sensível...

- Para vocês sábios só existem forças e histórias do gênero; mas nós vemos as coisas de maneira mais simples: encher um copo e esvaziá-lo, é isto que nos dá forças, disse o assistente, dirigindo-se ao armário.

- Você é quem sabe, respondeu o instrutor, mas, neste caso, deixe-nos nossos conhecimentos pouco entendidos.

As palavras do instrutor me agradaram; aproximei-me dele e lhe disse: “Permita-me contar-lhe ainda outra coisa a respeito do meu estaroste.” Expliquei como ele havia me aparecido em sonhos e, depois de ter-me ensinado, como havia feito uma marca na Filocalia. O instrutor ouviu este relato com atenção. Mas o assistente recostado num banco resmungou:

- A verdade é que fica-se louco por ter o nariz sempre enfiado na Bíblia. Não há o que se ver lá! Quem é a assombração que foi riscar seus livros à noite? Você deixou cair o alfarrábio por terra ao dormir e ele rolou nas cinzas... Este é todo o seu milagre! Oh!, estes malucos: eu os conheço bem, meu velho, os da sua confraria!

Após haver assim rosnado, o assistente voltou-se para o canto e adormeceu. Eu voltei-me para o instrutor e lhe disse:

- Se você quiser, eu lhe mostrarei o livro que traz este traço e não uma marca de cinza.

Tirei a Filocalia do saco e mostrei-a a ele dizendo:

- Fico espantado que seja possível a uma alma incorpórea tomar um carvão e escrever...

O instrutor observou o sinal sobre o livro e disse:

- Este é o mistério dos espíritos. Vou explicar-lhe. Quando os espíritos aparecem ao homem sob uma forma corporal, eles formam seu corpo visível de luz e de ar, utilizando para tanto os elementos dos quais foi extraído seu corpo mortal. E, como o ar é dotado de elasticidade, a alma que se reveste dele pode agir, escrever ou segurar objetos. Mas que livro é este? Deixe-me vê-lo.

Ele o abriu bem no discurso e tratado de Simeão o Novo Teólogo.

- Ah! Trata-se sem dúvida de um livro teológico. Mas eu não o conheço...

- Este livro, meu pai, contém quase exclusivamente o ensinamento sobre a prece interior do coração em nome de Jesus Cristo; ele está exposto aqui em detalhes por vinte e cinco Padres.

- Ah! A prece interior! Eu sei o que é, disse o instrutor.

Eu me inclinei quase até o chão diante dele e lhe pedi que me dissesse algumas palavras sobre a prece interior.

- Pois bem, diz-se no Novo Testamento que o homem e toda a criação estão submetidos malgrado sua vontade à vaidade e que tudo suspira e tende para a liberdade das crianças de Deus[44]. Este misterioso movimento da criação, este desejo inato nas almas, é a prece interior. Não se pode aprende-la, pois ela está dentro de todos e em tudo!...

- Mas como adquiri-la, descobri-la e senti-la no coração? Como tomar consciência dela e acolhe-la voluntariamente, chegar a que ela aja ativamente, regozijando, iluminando e salvando a alma?, perguntei.

- Não sei se os tratados teológicos falam disto, respondeu o instrutor.

- Mas aqui, aqui, está tudo escrito, exclamei.

O instrutor tomou um carvão, anotou o título da Filocalia e disse:

- Encomendarei este livro em Tobolsk e o lerei.

Assim nos separamos.

Seguindo, agradeci a Deus por minha conversação com o instrutor e roguei ao Senhor para que permitisse ao assistente ler pelo menos uma vez a Filocalia e compreender seu sentido para o bem de sua alma.




A JOVEM DA ALDEIA




Em outra ocasião, na primavera, cheguei a uma cidade e encaminhai-me ao padre. Era um homem excelente que vivia só. Passei três dias com ele. Depois de haver-me examinado durante este tempo, ele me disse:

- Fique comigo, e eu lhe darei um salário; preciso de um homem firme. Você notou que estamos construindo uma nova igreja em pedra, próxima à antiga, de madeira. Não consigo encontrar alguém que seja consciencioso para supervisionar os trabalhadores e para permanecer na capela para recolher os donativos para a construção; vejo que você será capaz e que esta existência lhe será muito conveniente; você ficará só na capela para orar a Deus, existe lá um refúgio isolado no qual você poderá permanecer. Fique, eu lhe peço, ao menos até que a igreja nova esteja terminada.

Eu resisti durante um tempo, mas enfim tive que ceder ante a insistência do padre. Eu ficaria então durante o verão até o outono, e assim fui me instalar na capela. No começo, tive muita tranqüilidade e pude exercer a oração, mas, sobretudo nos dias de festas, vinha muita gente, uns para rezar, outros para bailar, outros ainda para surrupiar alguma coisa da bandeja das oferendas. E como eu costumava estar lendo a Bíblia ou a Filocalia, alguns visitantes punham-se a conversar comigo enquanto outros me pediam que lhes lesse alguma coisa.

Depois de algum tempo, notei que uma jovem local vinha muitas vezes à capela e permanecia longos períodos orando. Escutando o que ela murmurava, percebi que ela dizia estranhas orações, algumas inteiramente desfiguradas. Eu lhe perguntei: “Quem lhe ensinou isto?” Ela me respondeu ter sido sua mãe, que era ortodoxa, enquanto seu pai era cismático[45] da seita dos sem-padre. Esta situação me pareceu triste e eu a aconselhei a recitar as orações corretamente, conforme a tradição da santa Igreja: eu lhe ensinei o Pai Nosso e a Ave Maria. Ao final, eu lhe disse: “Recite sobretudo a prece de Jesus, ela nos aproxima de Deus mais do que todas as outras orações e com ela você obterá a salvação de sua alma.” A jovem escutou-me com atenção e passou a agir segundo meus conselhos. E, acreditem, algum tempo depois ela anunciou-me que estava já habituada à prece de Jesus e que sentia desejo de repeti-la sem cessar, se possível; quando ela orava, ela sentia doçura e alegria, e o desejo de orar ainda mais. Eu regozijei-me com isto e aconselhei-a a orar cada vez mais, invocando o nome de Jesus Cristo.

Aproximava-se o fim do verão; muitos visitantes da capela vinham me ver, não apenas para pedir um conselho ou uma leitura, mas para contar suas angústias domésticas e até para saber como encontrar objetos perdidos; visivelmente, alguns me tomavam por uma espécie de feiticeiro. Um dia, a jovem acorreu cheia de infelicidade, para saber o que deveria fazer. Seu pai queria casá-la contra sua vontade com um cismático como ele e o oficiante seria um leigo.

- É este um casamento legal?, exclamava ela; isto não passa de um deboche! Eu vou fugir para onde meus olhos se voltarem.

Eu lhe disse:

- Para onde você vai fugir? Você será encontrada. Nos tempos que correm, você não poderá se esconder em nenhum lugar sem papéis, chegarão facilmente até você; será melhor rezar a Deus com zelo para que ele quebre com seus meios a resolução de seu pai e guarde sua alma do pecado e da heresia. Isto será melhor do que a sua idéia da fuga.

O tempo corria, e o barulho e as distrações se tornavam para mim cada vez mais penosos. Enfim terminou o verão; decidi abandonar a capela e retomar meu caminho como antes. Fui procurar o padre e lhe disse:

- Meu pai, você conhece minhas disposições. Tenho necessidade de calma para ocupar-me da oração, e aqui só encontro barulho e distrações. Cumpri com o que me pediu, permanecendo aqui por todo o verão; agora, deixe-me ir e abençoe meu caminho solitário.

O padre não queria deixar-me ir e pressionou-me com um discurso:

- O que o impede de rezar aqui? Você não tem mais que permanecer na capela, e você tem seu pão assegurado. Reze lá noite e dia se quiser; viva com Deus! Você é capaz e útil aqui, você não diz bobagens aos visitantes, é file e honesto e assegura ingressos à igreja de Deus. Isto é melhor aos olhos de Deus do que sua prece solitária. Porque permanecer sempre só? Junto com as pessoas rezamos mais alegremente. Deus não criou o homem para que ele só conheça a si mesmo, mas para que cada qual ajude seu próximo, conduzindo-se mutuamente para a salvação, cada um segundo sua capacidade. Veja os santos e os doutores ecumênicos, eles estavam dia e noite em movimento e em cuidados com a Igreja, eles pregavam por toda parte e não permaneciam na solidão escondendo-se dos irmãos.

- Cada qual recebe de Deus o dom que lhe convém, meu pai; muitos pregaram para as massas, e muitos viveram na solidão. Cada um agiu segundo sua inclinação e acreditou que aquela era a via da salvação, indicada pelo próprio Deus. Mas como você explica que tantos santos desdenharam todas as dignidades e honras da Igreja e fugiram para o deserto, para não serem tentados pelo mundo? Santo Isaac o Sírio abandonou assim seus fiéis e o bem-aventurado Atanásio o Atonita deixou seu mosteiro; eles consideravam estes lugares demasiado sedutores e acreditavam verdadeiramente na palavra de Jesus Cristo: De que serve ao homem ganhar o mundo, se perder sua alma[46]?

- Mas eles eram grandes santos, retrucou o padre.

- Se os santos se guardavam com tanto cuidado do contato com os homens, respondi-lhe, quanto mais deve fazê-lo um pobre pecador!

Enfim, eu disse adeus a este bom padre e nos separamos afetuosamente.

Ao cabo de dez verstas, detive-me para passar a noite em uma aldeia. Havia ali um doente quase à morte. Aconselhei sua família a fazê-lo comungar nos Santos Mistérios de Cristo e, pela manhã, eles enviaram alguém para buscar o padre na cidade. Eu permaneci para inclinar-me diante dos Santos Dons e orar durante este sacramento. Sentei-me num banco diante da casa para aguardar o padre. Subitamente, vi correr para mim a jovem que costumava rezar na capela.

- Como você chegou até aqui?, perguntei-lhe.

- Estava tudo pronto para meu casamento com o cismático, e então eu fugi.

Depois, atirando-se aos meus pés, ela exclamou:

- Oh!, por piedade, leve-me consigo e encaminhe-me para um convento; eu não quero me casar, eu viverei no convento recitando a prece de Jesus. Lá eles o escutarão e me aceitarão.

- Eh!, disse eu, para onde quer que eu a encaminhe? Eu não conheço nenhum convento por aqui, e não posso levá-la comigo se você não tem um passaporte. Você não poderá descansar em parte alguma. Logo a descobrirão; você será levada de volta e punida por vagabundagem. Volte para sua casa e ore a Deus; se você não quer mesmo se casar, finja alguma incapacidade. É o que se chama uma mentira piedosa; foi assim que agiu a santa mãe de Clemente, a bem-aventurada Marina, que conseguiu sua salvação num mosteiro de homens.

Enquanto estávamos falando assim, vimos quatro homens numa carroça, e eles galoparam diretamente para nós. Eles agarraram a moça, a colocaram na carroça e a despacharam com um deles; os outros três amarraram-me as mãos e me levaram à cidade aonde passara o verão. Diante de minhas explicações, eles respondiam gritando: “Você vai ver, santinho, vai aprender a seduzir as moças!” Pela tarde, eles me conduziram à cadeia, colocaram-me grilhões nos pés e me trancaram para ser julgado na manhã seguinte. O padre, ao saber que eu estava na prisão, veio me visitar; ele me levou algo para comer, consolou-me e disse que tomaria minha defesa e declararia enquanto confessor que eu não possuía as tendências que me atribuíam. Ele permaneceu mais um pouco comigo e se foi.

Ao aproximar-se a noite, o oficial de justiça local passou pela cidade e contaram-lhe o caso. Ele ordenou que se convocasse a assembléia comunitária e que eu fosse levado ao tribunal de justiça. Uma vez lá, permanecemos em pé à espera. Subitamente chegou o oficial de justiça, já bastante inflamado; ele sentou-se à mesa tirando o chapéu e gritou:

- Eh! Epifânio, esta jovem, sua filha, não levou nada de sua casa?

- Nada, meu senhor!

- Ela não fez nenhuma besteira com este idiota?

- Não, meu senhor!

- Então, o negócio está julgado e eu decido: faça o que quiser com sua filha; e este folgazão, nós lhe pediremos que desapareça amanhã, depois que o tivermos solidamente corrigido para que ele nunca mais ponha os pés aqui. Está feito!

Com estas palavras, o oficial levantou-se e foi dormir; quanto a mim, levaram-se de volta à prisão. Logo de manhãzinha, vieram dois cidadãos[47] que me chicotearam e eu fui liberado; fui embora, agradecendo ao Senhor por ter permitido que eu sofresse em seu nome. Isto me consolou e incitou-me ainda mais à oração.

Todos estes eventos não me angustiaram nem um pouco; era como se eles acontecessem com outra pessoa e eu fosse um espectador; mesmo quando me chicotearam, consegui suportar; a prece, alegrando meu coração, não me permitia prestar atenção em outra coisa.

No fim de umas quatro verstas, encontrei a mãe da jovem, que voltava do mercado. Ela se deteve e me disse:

- Nosso noivo nos abandonou. Ele voltou-se contra Akoulka[48], veja você, por ela ter fugido.

Depois ela me deu pão e um doce, e eu retomei o caminho.

O tempo estava seco e eu não tinha vontade de pernoitar numa vila; vi dois montes de feno na floresta e ali me instalei para passar a noite. Adormeci e me vi sonhando que seguia pelo caminho lendo os capítulos de santo Antônio o Grande[49] na Filocalia. Subitamente, o estaroste surgiu e me disse: “Não é isto que você deve ler”, e indicou-me o trigésimo quinto capítulo de João de Cárpatos, no qual está escrito: “às vezes o discípulo é entregue à desonra e suporta provas por aqueles a quem ele ajudou espiritualmente.” Ele mostrou-me também o capítulo 41 onde está dito: “Todos aqueles que se entregam mais ardentemente à oração são vítimas de tentações terríveis e esgotantes.”

Então ele me disse:

- Tome coragem e não se deixe abater! Lembre-se das palavras do Apóstolo: Aquele que está em vós é maior do que aquele que está no mundo[50]. Agora você pode ver por experiência própria que não existe tentação que esteja acima das forças do homem. Pois com a tentação Deus prepara também uma saída feliz[51]. É pela esperança no auxílio do Senhor que se sustentaram os santos que não apenas passaram a vida a rezar, mas que procuraram, por amor, ensinar e esclarecer os outros. Veja o que diz a respeito santo Gregório de Tessalônica[52]: “Não nos basta orar sem cessar em nome de Jesus Cristo conforme o mandamento divino, mas é preciso expor este ensinamento a todos, monges ou leigos, inteligentes e simples, homens, mulheres e crianças, a fim de despertar neles o zelo pela prece interior.” O bem-aventurado Calixto Telicoudas exprime-se do mesmo modo: “A atividade espiritual (ou seja, a prece interior), diz ele, o conhecimento contemplativo e os meios para elevar a alma não devem ficar guardados apenas em si, mas é preciso comunicá-los pela escrita ou por discursos para o bem e o amor de todos. E a palavra de Deus declara que o irmão ajudado por seu irmão é como uma cidadela grande e forte[53]. É preciso apenas fugir com todas as forças da vaidade e vigiar para que as boas sementes do ensinamento divino não sejam levadas pelo vento.”

Ao despertar, senti em meu coração uma grande alegria e novas forças na alma. E assim segui meu caminho.




CURAS MARAVILHOSAS




Algum tempo depois, tive outra aventura. Se me permitem, vou contá-la.

Num belo dia, 24 de Março, senti uma necessidade insuperável de comungar com os santos mistérios de Cristo no dia consagrado à Mãe de Deus em lembrança de sua divina Anunciação. Perguntei se havia uma igreja pelos arredores; disseram-me que havia uma a trinta verstas.

Caminhei o resto do dia e por toda a noite para chegar na hora das matinas. O tempo estava dos piores, com neve, chuva, um forte vento e muito frio. O caminho atravessava um regato e eu não havia dado mais que alguns passos quando o gelo partiu-se sob meus pés e eu caí na água até a cintura. Cheguei todo estropiado para as matinas, que escutei assim como à missa, durante a qual Deus permitiu que eu comungasse.

Para passar este dia em paz, sem nada que perturbasse a alegria espiritual, pedi ao guardião que me deixasse ficar até o dia seguinte na cabana da guarda. Passei todo este dia numa alegria indizível e na paz do coração; estava deitado no banco desta cabana mal aquecida como se estivesse repousando sobre o seio de Abraão: a prece agia com força. O amor por Jesus Cristo e pela Mãe de Deus percorria meu coração em ondas benfazejas e mergulhava minha alma num êxtase consolador. Como chegasse a noite, senti subitamente uma forte dor nas pernas e lembrei-me de que elas estavam molhadas. Mas, repelindo esta distração, voltei a mergulhar na prece e me senti menos mal. Pela manhã, quando quis me levantar, não podia mover as pernas. Elas estavam sem forças e tão moles como um trapo de pano; o guarda me empurrou para fora do banco e eu passei dois dias sem me mover. No terceiro dia, o guarda me expulsou da cabana dizendo: “– Se você morre aqui, ainda terei que correr e me ocupar com você.” Arrastei-me sobre as mãos até o adro da igreja, onde me deitei. Permaneci assim por quase dois dias. As pessoas que passavam não davam a menor atenção nem a mim nem às minhas súplicas.

Enfim, um cidadão aproximou-se de mim e começou a inquirir-me. Depois de um certo tempo, ele me disse:

- O que você pode me dar? Eu vou curá-lo. Já tive exatamente a mesma coisa e conheço o remédio.

- Eu não tenho nada para lhe dar, respondi-lhe.

- E o que há no seu saco?

- Nada senão pão seco e livros.

- Muito bem, você trabalhará para mim durante o verão e eu o curarei.

- Tampouco posso trabalhar. Como vê, só tenho um braço válido.

- Então o que você sabe fazer?

- Nada, senão ler e escrever.

- Ah! escrever! Pois bem, você ensinará meu filho a escrever, ele sabe ler um pouco e quero que ele aprenda a escrever. Mas os professores cobram caro, querem vinte rublos para ensinar toda a escrita.

Fiquei assim combinado com ele e, com a ajuda do guarda, eles me transportaram à sua casa, onde me puseram em um velho banho[54] no fundo do quintal.

Então ele começou a me curar: juntou pelos campos, nos caminhos e nos fossos de lixo uma grande quantidade de ossos de animais, de pássaros e de todo tipo; ele os lavou, quebrou-os em pequenos pedaços com uma pedra e colocou tudo numa grande panela; ele a tampou com uma tampa que tinha um pequeno orifício e emborcou a panela sobre um pote que ele havia enterrado no chão. Ele recobriu cuidadosamente o fundo da panela com uma espessa camada de argila e a cobriu de madeiras que pôs a queimar durante vinte e quatro horas. Enquanto dispunha a lenha para o fogo, ele disse: “Tudo isto vai formar uma graxa de ossos.” No dia seguinte, ele desenterrou o pote, para onde havia escorrido pelo orifício da tampa da panela cerca de um litro de um líquido espesso, avermelhado, oleoso e cheirando a carne fresca; os ossos ficaram na panela, e de escuros e podres que eram tinham agora uma cor tão branca e transparente quanto o nácar ou as pérolas. Cinco vezes ao dia ele friccionava minhas pernas com este líquido. E acreditem, no dia seguinte eu senti que já podia mover os dedos; no terceiro dia eu podia dobrar as pernas, e no quinto eu me mantinha em pé e caminhava no pátio apoiado num bastão. Em uma semana, minhas pernas tinham voltado ao normal. Eu agradeci a Deus por isso e disse para mim mesmo: a sabedoria de Deus aparece em suas criaturas! Ossos ressecados, ou apodrecidos, quase se tornando terra, ainda guardavam em si a força vital, uma cor e um odor; eles podiam exercer uma ação sobre corpos vivos, aos quais devolveram a vida! É uma garantia da Ressurreição futura. Se eu pudesse contar isto ao guarda florestal com quem vivi, e que duvidava da Ressurreição dos corpos!

Uma vez curado, comecei a ocupar-me do menino. Como modelo, escrevi a prece de Jesus e fiz com que a copiasse, mostrando-lhe como formar letras harmoniosas. Era muito repousante para mim, porque durante o dia ele trabalhava com o intendente e só vinha ver-me enquanto ele dormia, ou seja bem cedo pela manhã. O rapaz era atento e logo escrevia quase tudo corretamente.

Ao vê-lo escrever, o intendente perguntou:

- Quem o está ensinando?

O menino disse que era um peregrino maneta que vivia com eles na velha casa de banhos. O intendente, curioso – era um polonês – veio ver-me e me encontrou lendo aFilocalia. Ele conversou um pouco comigo e disse:

- O que você está lendo?

Mostrei-lhe o livro.

- Ah! É a Filocalia, disse ele. Eu vi este livro com nosso cura num tempo em que morei em Vilna. Mas eu ouvi falar que ele contém estranhas receitas e procedimentos de oração, inventadas pelos monges gregos a exemplo dos fanáticos da Índia e de Bukhara, que enchem seus pulmões e acreditam estupidamente, quando chegam a sentir qualquer cócega no coração, que esta sensação natural é uma prece enviada por Deus. É preciso rezar com simplicidade, para cumprir o dever para com Deus; ao levantarmos, devemos recitar o Pai Nosso como ensinou o Cristo; e estamos quites por toda a jornada. Mas ficar repetindo o tempo todo a mesma coisa é arriscar-se a enlouquecer e inutilizar o coração.

- Não fale assim deste santo livro, caro senhor. Não foram simples monges gregos que o escreveram, mas antigos e santos personagens que a sua Igreja também venera, como Antônio o Grande, Macário o Grande, Marcos o Asceta, João Crisóstomo e outros. Os monges da Índia e de Bukhara tomaram emprestada a técnica da prece do coração, mas a desfiguraram e danificaram, como me contou meu estaroste. NaFilocalia, todos os ensinamentos sobre a prece interior são extraídos da Palavra divina, da santa Bíblia, na qual Jesus Cristo, ao mesmo tempo em que ordenava dizer o Pai Nosso, também afirmou que era preciso orar sem cessar, dizendo: Ama o Senhor teu Deus com todo o teu coração e todo o teu espírito[55]; observai, vigiai e orai[56]; vós permanecereis em mim e eu em vós[57]. Os santos Padres, citando o testemunho do rei Davi nos salmos: Provem e vejam como o Senhor é bom[58], interpretam-no dizendo que o cristão deve fazer tudo para conhecer a doçura da oração, deve buscar a consolação sem cessar e não contentar-se em recitar uma só vez o Pai Nosso. Espere, eu vou ler-lhe o que dizem os santos Padres daqueles que não tentam estudar a benfazeja prece do coração. Eles declaram que eles cometem um triplo pecado, pois, em primeiro lugar, eles se colocam em contradição com as santas Escrituras; em segundo, eles não admitem que possa haver para a alma um estado superior e perfeito: contentando-se com as virtudes exteriores, eles ignoram a fome e a sede de justiça e privam-se da beatitude em Deus; e em terceiro, ao considerar suas virtudes exteriores, eles caem freqüentemente no auto contentamento e na vaidade.

- Você leu algo de bastante elevado, disse o intendente; mas como nós, os leigos, poderemos seguir esta via?

- Espere, eu vou ler de que modo os homens de bem puderam, embora leigos, aprender a oração constante. Tomei na Filocalia o tratado de Simeão o Novo Teólogo sobre o jovem Jorge[59] e me pus a ler.

Isto agradou o intendente que me disse:

- Dê-me este livro para que eu o leia nos momentos livres.

- Se você quiser, posso emprestá-lo por um dia, não mais do que isto, pois eu o leio sem parar e não posso passar sem ele.

- Mas você poderá ao menos copiar-me esta passagem; eu lhe darei dinheiro.

- Não tenho necessidade de dinheiro, mas a copiarei com prazer, esperando que Deus lhe dê o zelo pela oração.

Imediatamente, copiei a passagem que havia lido. Ele a leu para sua esposa e os dois gostaram muito. A partir deste dia, eles mandavam buscar-me de tempos em tempos. Eu chegava com a Filocalia; eu lia, eles escutavam e tomávamos chá. Um dia, eles me convidaram para jantar. A esposa do intendente, uma senhora amável, estava conosco e comia um peixe grelhado. Subitamente, ela engasgou-se com uma espinha; malgrado nossos esforços, não conseguimos livrá-la, ela feriu-se na garganta e duas horas depois ela teve que deitar-se. Foram enviadas pessoas para buscar um médico a trinta verstas de distância, e eu voltei para minha casa entristecido.

Durante a noite, como estava com o sono muito leve, ouvi de repente a voz do meu estaroste, sem ver ninguém; a voz me dizia: “Seu patrão o curou, e você não pode fazer nada pelo intendente? Deus nos ordenou compartilhar as infelicidades do próximo”. Respondi que o faria com o maior prazer, mas como, se não conhecia nenhum remédio? “Eis o que você deve fazer: ela sempre teve uma violenta repulsa por óleo de rícino; só com o cheiro, ela sente náuseas; então dê-lhe uma colherada de óleo de rícino, ela vomitará, a espinha sairá, o óleo suavizará o ferimento de sua garganta e ela estará curada.” Perguntei então como fazê-la beber, já que sua repulsa era tão grande? “Peça ao intendente que segure sua cabeça e entorne o líquido em sua boca.”

Acordei do cochilo e corri para o intendente, contando-lhe tudo em detalhe. Ele me disse:

- De que servirá o óleo? Ela já está febril, delira e seu pescoço está todo inchado. Mas não custa tentar; se o óleo não fizer bem, tampouco fará mal.

Ele encheu um pequeno copo com óleo de rícino e conseguimos fazê-la beber. Imediatamente, ele sofreu um forte vômito e expeliu a espinha[60] com um pouco de sangue; ela sentiu-se melhor e adormeceu profundamente.

Na manhã seguinte, fui saber das novidades e a encontrei com seu marido tomando um chá; eles estavam espantados com a cura e sobretudo pelo que me havia sido dito em sonhos sobre sua aversão ao óleo de rícino, pois jamais haviam comentado isto com ninguém. Depois chegou o médico; o intendente contou-lhe como ela havia sido curada e eu contei como eu mesmo fora curado das pernas. O médico declarou:

- Estes dois casos não são surpreendentes: trata-se de uma força da natureza que agiu nos dois casos, mas eu vou anotá-los como registro; ele tirou um lápis do bolso e escreveu algumas palavras num caderno.

Logo espalhou-se a história de que eu era um adivinho, um curador e um mágico; de toda parte vinham consultar-me, traziam-me presentes e começavam a venerar-me como a um santo. Ao cabo de uma semana, refleti sobre tudo isto e tive medo de cair na vaidade e na dissipação. E na noite seguinte, deixei a aldeia em segredo.




CHEGADA A IRKUTSK




Assim, mais uma vez eu avançava sobre o caminho solitário e me sentia tão leve como se uma montanha tivesse sido t irada das minhas costas. A prece consolava-me cada vez mais; às vezes meu coração borbulhava com um amor infinito por Jesus Cristo e ondas benfazejas deste maravilhoso borbulhar espalhavam-se por todo meu ser. A imagem de Jesus Cristo estava de tal modo gravada em meu espírito que ao pensar nos eventos do Evangelho era como se eu os tivesse vendo diante dos meus olhos. Eu estava emocionado e chorava de alegria, e às vezes sentia em meu coração tamanha felicidade que não consigo descrever. Eventualmente eu passava três dias longe de qualquer habitação humana e, extasiado, sentia-me só sobre a terra, miserável pecador diante do Deus compassivo e amigo dos homens. Esta solidão fazia minha felicidade e a doçura da prece era muito mais sensível do que no contato com os homens.

Enfim cheguei a Irkutsk. Após me haver inclinado diante das relíquias de santo Inocêncio, perguntei-me aonde iria a seguir. Não tinha vontade de permanecer muito tempo na cidade, que era muito populosa. Eu caminhava pela rua refletindo. Subitamente encontrei um comerciante local, que me deteve e disse:

- Você é um peregrino? Porque não vem à minha casa?

Chegamos à sua rica mansão. Ele me perguntou quem eu era e eu lhe contei minha viagem. Depois ele me disse:

- Você deve ir a Jerusalém. Lá existe uma santidade que nada pode comparar!

- Irei com alegria, respondi, mas não sei como pagar a travessia, pois é preciso muito dinheiro.

- Se você quiser, eu lhe indicarei um meio, disse o comerciante; no ano passado, eu enviei para lá um ancião amigo nosso.

Caí a seus pés e ele me disse:

- Escute, eu lhe darei uma carta para meu filho que está em Odessa e comercia com Constantinopla; existem muitos navios, ele o fará chegar a Constantinopla e, de lá, seus escritórios pagar-lhe-ão a viagem até Jerusalém. Não é tão caro.

Diante dessas palavras, fiquei cheio de alegria, agradeci muitíssimo meu benfeitor e agradeci sobretudo a Deus que manifestava um amor tão paternal para comigo, pecador endurecido, que não faço bem nem a mim nem a ninguém, comendo inutilmente o pão dos outros.

Permaneci por três dias com este generoso comerciante. Ele me entregou uma carta para seu filho e assim eu pretendia seguir para Odessa na esperança de alcançar a cidade santa de Jerusalém. Mas eu não sabia se o Senhor me permitiria inclinar-me diante de seu sepulcro vivificante.



TERCEIRO RELATO



Antes de minha partida de Irkutsk, procurei o pai espiritual com quem já tinha tido algumas conversações e lhe disse:

- Aqui estou, e brevemente estarei a caminho de Jerusalém; vim dizer-lhe adeus e agradecer-lhe por sua caridade cristã para comigo, miserável peregrino.

Ele me disse:

- Que Deus abençoes seu caminho. Mas você nada me contou sobre si, quem é você e de onde vem. Já ouvi muitas histórias de suas viagens; gostaria de conhecer sua origem e sua existência até o dia em que você iniciou sua vida errante.

- Contar-lhe-ei com prazer, disse eu. Não é um história muito longa.




A VIDA DO PEREGRINO




Nasci em uma aldeia da província de Orel. Depois que meus pais morreram, restamos apenas meu irmão mais velho e eu. Ele tinha dez anos e eu estava com três anos. Nosso avô nos recolheu para nos criar. Era um velho senhor honrado e de bom trato, que mantinha um albergue à beira da estrada e, como ele era muito bom, muitos viajantes detinham-se ali. Assim fomos viver com ele; meu irmão era muito vivo e andava todo o tempo pela aldeia, enquanto eu permanecia mais tempo com meu avô. Nos dias de festa, ele nos levava à igreja, e em casa ele freqüentemente lia a Bíblia, esta que trago comigo. Meu irmão cresceu e começou a beber. Eu tinha sete anos; um dia, eu estava deitado com ele sobre a poêle[61], ele me empurrou e me fez cair. Eu estropiei meu braço esquerdo e, desde então, não posso mais me servir dele, que acabou por ressecar.

Meu avô, vendo que eu não poderia empregar-me em trabalhos de campo, resolveu ensinar-me a ler e, como não tínhamos uma gramática, ele se servia da Bíblia: ele me mostrava as letras e me obrigava a soletrar as palavras e a anotar as letras. Desta maneira, não sei bem como, à força de repetir para ele, acabei aprendendo a ler. Mais tarde, quando ele já não enxergava bem, ele me fazia ler a Bíblia em voz alta e me corrigia. À hospedaria vinha sempre um oficial de justiça, que tinha uma bela letra e que eu gostava de ver escrevendo. Por minha própria conta eu comecei a formar palavras seguindo seu exemplo. Ele então indicou-me como fazer, deu-me papel, tinta e preparou-me algumas penas. Assim eu aprendi também a escrever. Meu avô ficou contente com isso e me disse:

- Deus lhe deu o conhecimento das letras, e você se tornará um homem. Agradeça ao Senhor e reze com muita freqüência.

Nós íamos sempre aos serviços da igreja e em casa também rezávamos constantemente; ele me fazia repetir: Tem piedade de mim, Senhor, e meu avô e minha avó inclinavam-se quase até o chão ou ajoelhavam-se. Quando cheguei aos dezessete anos minha avó morreu. Meu avô me disse:

- Cá estamos sem a senhora da casa; como vamos nos arrumar sem uma mulher? Seu irmão mais velho não serve para nada, vou dar um jeito de casar você.

Eu recusei, devido à minha enfermidade, mas meu avô insistiu e acabaram por casar-me com uma jovem boa e séria. Ela tinha vinte anos. Um ano se passou e meu avô caiu doente, quase para morrer. Ele me chamou, despediu-se de mim e disse:

- Eu lhe deixo a casa e tudo o que eu tenho; viva como se deve, não engane as pessoas, reze a Deus acima de tudo; é dele que tudo vem. Não coloque sua esperanças em nada senão em Deus, vá à igreja, leia a Bíblia e lembre-se de nós em suas orações. Aqui estão mil rublos de prata, guarde-os, não os gaste por qualquer coisa, mas não seja avaro, dê aos mendicantes e às igrejas de Deus.

Ele morreu e eu o enterrei. Meu irmão ficou com inveja por eu ter recebido o albergue como herança: ele me fez ameaças e o Inimigo o conduziu tão bem que ele resolveu me matar. Numa noite em que dormíamos e não tínhamos hóspedes ele penetrou na despensa e provocou um incêndio depois de pegar todo o dinheiro que havia no cofre. Nós despertamos quando a casa já estava tomada pelas chamas e mal tivemos tempo de pular pela janela, apenas com a roupa do corpo.

Nossa Bíblia estava na mesa de cabeceira e nós a trouxemos conosco. Nós víamos nossa casa queimar e dizíamos: Graças a Deus, salvamos nossa Bíblia; assim, podíamos ao menos nos consolar. Deste modo, nossos bens foram queimados e meu irmão fugiu da província. Mais tarde, bêbado, ele vangloriou-se disto e assim soubemos ter sido ele que roubou o dinheiro e pôs fogo no edifício.

Ficamos nus e sem nada, como verdadeiros mendigos; mal e mal, emprestando daqui e dali, conseguimos uma pequena cabana e passamos a viver como pobres diabos. Minha esposa não tinha rival na arte de fiar, tecer e costurar. Ela conseguia encomendas e trabalhava dia e noite para nos alimentar. Devido ao meu braço, eu não conseguia sequer trançar sandálias de corda. Normalmente, ela fiava e tecia enquanto eu, ao seu lado, lia a Bíblia; ela escutava e às vezes começava a chorar. Quando eu lhe perguntava:

- Porque você chora? Graças a Deus, vamos levando, ela respondia:

- Fico emocionada porque na Bíblia tudo está tão bem escrito.

Nós sempre nos lembrávamos da recomendação de meu avô, jejuávamos muitas vezes, líamos a cada manhã o hino acatista[62] e à tarde fazíamos cada qual mil saudações diante das imagens para não cair em tentação. Assim vivemos tranqüilamente por dois anos. Mas veja o mais espantoso: nós não sabíamos nada da prece interior feita no coração, nunca ouvíramos falar dela, rezávamos apenas com a língua , fazíamos nossas reverências como tolos, e no entanto, o desejo de rezar estava presente, esta longa oração exterior não nos parecia difícil, nos a cumpríamos com prazer. Sem dúvida tinha razão o instrutor que me disse existir no interior do homem uma oração misteriosa que ninguém sabe como se produz, mas que incita cada um a rezar como puder ou souber.

Depois de dois anos nesta vida, minha esposa teve uma febre muito alta e, no nono dia, depois de comungar, ela morreu. Eu fiquei só, completamente só e não tinha o que fazer; não me restava mais que sair a mendigar pelo mundo, mas eu tinha vergonha de pedir esmolas; ademais , eu estava tão infeliz pensando em minha esposa que não sabia sequer onde me abrigar. Quando voltei à cabana e vi um de seus vestidos ou seu lenço de cabeça, comecei a soluçar e tombei inconsciente. Para viver assim naquela casa, eu não poderia suportar a angústia, e assim vendi a cabana por vinte rublos e distribui as minhas roupas e de minha esposa entre os pobres. Devido à minha enfermidade deram-me um passaporte perpétuo; tomei minha Bíblia querida nas mãos e saí pelo mundo, seguindo aonde meu olhar me levasse.

Chegando à estrada, eu me perguntei: onde ir agora? Pensei em ir primeiro a Kiev, prostrar-me diante dos santos de Deus e lhes pedir ajuda em meu sofrimento. A partir do momento em que tomei esta decisão, senti-me melhor e cheguei a Kiev, aliviado. Desde então fazem vinte anos que caminho sem me deter; visitei muitas igrejas e mosteiros, mas agora caminho sobretudo pelas estepes e pelos campos. Não sei se o Senhor me permitirá chegar até a santa Jerusalém. Se for a vontade de Deus, chegará talvez o dia de enterrar lá meus ossos pecadores.

- E que idade tem você?

- Trinta e três anos.

A idade de Cristo!

QUARTO RELATO


Mas, para mim, a felicidade é me aproximar de Deus, é pôr minha confiança no Senhor a fim de narrar as vossas maravilhas diante das portas da filha de Sião[63].


O provérbio russo tem razão, disse eu, ao voltar ao meu pai espiritual: o homem põe e Deus dispõe. Eu pensei que partiria hoje para a cidade santa de Jerusalém, mas tudo se inverteu: um acontecimento imprevisto me retém aqui ainda por dois ou três dias. Não pude me impedir de vir vê-lo para contar-lhe e pedir seu conselho a propósito. Eis o que aconteceu.

Eu já havia dito adeus a todos e, com a ajuda de Deus, retomei o caminho; ia saindo da cidade, passando pelas últimas casas, quando divisei um velho peregrino que não via há três anos. Saudamo-nos e ele me perguntou para onde eu ia. Eu lhe respondi:

- Se Deus quiser, vou para a velha Jerusalém.

- Ora, bem!, respondeu ele, eu tenho um ótimo companheiro para você.

- Misericórdia!, disse-lhe eu. Você não sabe que eu nunca procuro companhia e que viajo sempre só?

- Sim, mas ouça um pouco: eu sei que este irá lhe convir muito bem. Tudo irá bem para ele, se seguir com você, e para você, se for com ele. O pai do proprietário desta casa, aonde trabalho, fez voto de ir a Jerusalém; você não terá problemas em ir com ele. É um comerciante daqui, um bom velho que, além do mais, é completamente surdo. Você pode gritar quanto quiser, ele não ouve nada; quando querem pedir-lhe alguma coisa, é preciso escrever num pedaço de papel. Ele está sempre quieto, e não vai incomodá-lo durante o caminho. Mas você será indispensável a ele no trajeto. Seu filho lhe deu um cavalo e uma carroça, que ele venderá em Odessa. O velho quer marchar a pé, mas colocaremos sua bagagem e alguns donativos para o Sepulcro do Senhor na carroça. Você pode colocar lá seu saco... Agora, reflita. Você acha que podemos deixar ir assim, inteiramente só, um velho completamente surdo? Nós procuramos um condutor por toda parte, mas eles pedem muito caro, e depois é perigoso deixá-lo partir com um desconhecido, pois ele leva dinheiro e objetos preciosos. Aceite, irmão, isto será um bem; aceite para glória de Deus e por amor ao próximo. Quanto a mim, darei garantias por você e meus patrões ficaram felizes; são ótimas pessoas e gostam muito de mim. Faz dois anos que estou com eles.

Depois de conversarmos assim diante da porta da casa, ele me fez entrar para conhecer os patrões e vi que era uma família honrada; aceitei a proposta. Decidimos partir dois dias após o Natal, se Deus quiser, após assistir a divina liturgia.

Foram estes os acontecimentos imprevistos que se produziram nos caminhos da vida! Mas é sempre Deus e a divina Providência que agem sobre nossas ações e nossas intenções, como está escrito: “Porque é Deus quem, segundo o seu beneplácito, realiza em vós o querer e o executar[64].”

Meu pai espiritual me disse:

- Eu me regozijo cordialmente, irmão amado, que o Senhor me tenha assim permitido revê-lo. E como você está livre, eu o segurarei um pouco e você me contará alguns de seus encontros ao longo de sua vida errante. Terei prazer em escutar seus relatos.

- Farei com alegria, respondi-lhe, e comecei a contar.

Houveram tanto coisas boas como más; não há como contar tudo, e muitas coisas perderam-se da memória, pois eu sempre tentei manter a lembrança daquilo que conduzia minha alma preguiçosa à oração; todo o resto eu raramente evoquei, ou, para melhor dizer, eu me impus esquecer o passado, segundo o ensinamento do apóstolo Paulo, que disse: Esquecendo o que está atrás e voltando-me exclusivamente para o que está adiante, eu corro direto ao objetivo[65]. E meu bem-aventurado estaroste me dizia que os obstáculos à oração podem vir da direita e da esquerda[66], ou seja, se o inimigo não pode desviar a alma com pensamentos vãos e imagens culposas, ele faz reviver na memória as lembranças edificantes ou as belas idéias, a fim de arrancar a prece do espírito, que ele não pode suportar. Isto é chamado desvio da direita: a alma, distraindo-se da conversação com Deus, entra numa prosa deliciosa consigo mesma ou com as criaturas. Ele também me disse que, no momento da prece, não devemos admitir no espírito nem mesmo o mais belo e sublime pensamento; e se, no final do dia, percebemos que passamos mais tempo meditando ou em atividades edificantes do que pura e simplesmente orando, é preciso considerar isto como uma imprudência ou como uma avidez espiritual egoísta, sobretudo entre os iniciantes, para quem o tempo empregado na oração deve superar o tempo consagrado às demais atividades piedosas.

Mas nem tudo pode ser esquecido. Algumas lembranças imprimem-se tão profundamente na memória que permanecem vivas sem que as evoquemos, como por exemplo esta de uma piedosa família junto à qual Deus me permitiu passar alguns dias.




UMA FAMÍLIA ORTODOXA




Quando atravessava a província de Tobolsk, passei um dia por uma pequena vila. Eu quase já não tinha pão, de modo que procurei uma casa em que pedir um pouco. O dono da casa me disse:

- Você chegou em boa hora, minha esposa acabou de retirar o pão do forno. Tome este bocado quentinho e reze por nós.

Enquanto agradecia, coloquei o pão no saco; a dona da casa me viu e disse:

- Que pobre saco você tem aí, ele está todo puído, eu vou lhe dar outro.

E ela me trouxe um bom e sólido saco. Eu lhes agradeci do fundo do coração e parti. Na saída da aldeia, pedi um pouco de sal no armazém e o comerciante deu-me um saquinho. Fiquei feliz e agradeci a Deus que me dirigiu a pessoas tão decentes.

- Eis que me vejo tranqüilo por uma semana, disse a mim mesmo. Poderei dormir sem preocupações. Minha alma bendiga o Senhor[67]!

Eu já estava a cinco verstas da vila quando divisei uma aldeia de aparência rica com uma igreja em madeira, pequena mas com o exterior bem pintado e delicadamente decorada. O caminho passava perto e tive vontade de prosternar-me diante do templo de Deus. Subi as escadas e fiz uma prece.

Na pradaria atrás da igreja, duas crianças brincavam; deveriam ter uns cinco ou seis anos, Pensei comigo que apesar do seu ar refinado, deviam ser filhos do padre. Terminada a oração, levantei-me para ir. Não havia dado dez passos quando ouvi gritarem atrás de mim:

- Gentil mendigo! Gentil mendigo! Espere!

Eram as crianças que gritavam e corriam para mim; um menino e uma menina; eu me detive e, acorrendo, eles me tomaram pela mão:

- Vamos até a mamãe. Ela ama os mendigos.

- Eu não sou um mendigo, eu sou um viajante.

- O que é que tem neste saco?

- É meu pão para a viajem.

- Não tem importância, venha conosco, mamãe lhe dará dinheiro para a viajem.

- E onde está a sua mamãe?, perguntei-lhes.

- Logo ali, atrás da igreja, para lá das árvores.

Elas me fizeram entrar num jardim maravilhoso, no meio do qual vi um grande solar; entramos num vestíbulo. Como tudo era de bom gosto e bem arrumado! Subitamente, a senhora veio a nós.

- Como estou feliz! De onde nos enviou Deus o senhor? Sente-se, sente-se meu caro!

Ela mesma tomou meu saco, colocou-o sobre uma mesinha e me fez sentar em uma cadeira extremamente macia.

- Quer comer? Tomar chá? Precisa de alguma coisa?

- Eu agradeço humildemente, respondi-lhe, mas tenho do que comer dentro do saco e quanto ao chá, posso bebê-lo, mas não tenho o hábito, porque sou camponês; sua amabilidade e sua gentileza são mais preciosas que uma refeição; pedirei a Deus que os abençoe por esta hospitalidade evangélica.

Ao dizer estas palavras, senti um forte desejo de voltar à minha solidão. A prece fervilhava em meu coração e eu tinha necessidade de calma e de silêncio para deixar esta chama crescer livremente e para esconder os sinais exteriores da prece, lágrimas, suspiros, movimentos dos olhos e dos lábios.

Assim, levantei-me e disse:

- Eu peço perdão, mas preciso partir. Que o Senhor Jesus Cristo esteja consigo e com estas duas adoráveis crianças.

- Ah! Não! Deus não permita que se vá, não o deixarei partir. Meu marido deve retornar da cidade esta tarde, ele é juiz do tribunal do distrito. Ele ficará feliz em vê-lo! Ele considera cada peregrino como um enviado de Deus. Ademais, no próximo domingo, você rezará conosco no ofício, e o que Deus nos enviar, comeremos juntos. Aqui, nas festas, recebemos sempre no mínimo trinta pobres mendigos, irmãos de Cristo. E você ainda não nos disse nada sobre si, nem de onde você vem, nem para onde vai. Conte-me isto, eu adoro conversar com quem venera o Senhor. Crianças! Levem o saco do peregrino para a sala dos ícones, é lá que ele passará a noite.

Diante destas palavras, eu disse para mim mesmo:

- Será isto um ser humano ou uma aparição?

Desta forma, fiquei para aguardar o dono da casa. Contei rapidamente minha viagem e disse que iria a Irkutsk.

- Pois bem!, disse a senhora, neste caso você deve passar por Tobolsk, minha mãe mora lá, num convento onde ela está reclusa; nós lhe daremos uma carta e ela o receberá. Muitas pessoas vão lhe pedir conselhos espirituais; e aliás você poderá levar-lhe um livro de João Clímaco que encomendamos em Moscou. Como tudo, isso irá muito bem!

Enfim chegou a hora de comer e nos sentamos à mesa. Vieram ainda mais quatro senhoras que sentaram-se conosco. Após o primeiro prato, uma delas levantou-se, inclinou-se diante do ícone, à nossa frente, e foi buscar o prato seguinte; para o terceiro prato, uma outra levantou-se do mesmo modo. Ao ver isto, dirigi-me à dona da casa:

- Posso perguntar-lhe se estas senhoras são de sua família?

- Sim, são minhas irmãs, a cozinheira, a esposa do cocheiro, a arrumadeira, e minha dama de companhia; são todas casadas, não há nenhuma mulher solteira na casa.

Vendo e ouvindo isto, fiquei ainda mais espantado e agradecia Deus que me havia conduzido a pessoas tão piedosas. Senti a oração crescer com força em meu coração; assim, para buscar a solidão, levantei-me e disse à senhora:

- Vocês devem repousar após a refeição, mas eu tenho tanto o costume de caminhar que vou dar um passeio no jardim.

- Não, eu não costumo repousar, disse a senhora. Irei com você ao jardim e você me contará alguma coisa instrutiva. SE você for só, as crianças não o deixarão em paz; eles não o largarão, pois elas amam os mendigos, irmãos de Cristo, e os peregrinos.

Não havia nada a fazer, e assim fomos juntos ao jardim..

A fim de manter mais comodamente meu silêncio, inclinei-me diante da senhora e lhe disse:

- Peço-lhe, mãezinha, em nome de Deus, que me diga há quanto tempo vocês levam esta vida tão santa? Conte-me como chegaram a este grau de bondade.

- É bem fácil, disse ela. Minha mãe é neta de são Josafá, cuja relíquias são cultuadas em Belgorod. Tínhamos lá uma grande casa, e uma de suas alas estava alugada a um fidalgo de pouca fortuna. Ele faleceu e pouco depois sua esposa faleceu também, depois de ter trazido uma criança ao mundo.

O recém-nascido estava completamente órfão. Minha mãe recolheu-o e eu nasci no ano seguinte. Nós crescemos juntos, tivemos os mesmos professores e éramos como irmão e irmã. Quando meu pai morreu, minha mãe deixou a cidade e veio estabelecer-se conosco nesta aldeia. Quando chegamos à idade, minha mãe casou-me com seu afilhado e decidiu entrar para o convento. Depois de nos dar a sua bênção, ela nos recomendou que vivêssemos como cristãos, que rezássemos a Deus com todo o coração e que observássemos acima de tudo o mandamento mais importante, o do amor ao próximo, ajudando os pobres, irmãos de Cristo, educando nossos filhos no temor a Deus e tratando nossos criados como irmãos. É assim que vivemos há dez anos nessa solidão, tentando obedecer aos conselhos de nossa mãe. Temos um asilo para mendigos, no qual estão mais de dez neste momento, enfermos e doentes; se você quiser podemos ir vê-los amanhã.

Ao final de seu relato, eu perguntei:

- E onde está este livro de João Clímaco que vocês querem enviar à sua mãe?

- Retornemos à casa, e eu lhe mostrarei.

Mal havíamos começado a ler, quando chegou o dono da casa. Nós nos abraçamos cristãmente como irmãos, e ele conduziu-me ao seu escritório, dizendo:

- Venha, meu caro, até meu escritório, abençoar minha cela. Ela deve tê-lo aborrecido (apontou sua esposa). Sempre que ela encontra um peregrino ou um doente, fica tão feliz que não o larga noite e dia; é um velho costume da família.

Nós entramos em seu escritório. Que quantidade de livros e de ícones magníficos, além de uma cruz em tamanho natural diante da qual estava posto um Evangelho! Eu me persignei e disse:

- Vocês têm aqui, meu senhor, o paraíso de Deus. Ali está o Senhor Jesus Cristo, sua Mãe puríssima e os santos servidores; e aqui suas palavras e seus ensinamentos vivos e imortais; penso que muitas vezes vocês têm o prazer de entreter-se com eles.

- Sim, disse o senhor, gostamos muito de ler.

- Que tipo de livros vocês têm?

- Tenho muitos livros espirituais: eis o Menólogo[68], as obras de João Crisóstomo, de Basílio o Grande, muitas obras filosóficas ou teológicas e numerosos sermões de pregadores contemporâneos. Esta biblioteca custou-me cinco mil rublos.

- Haveria aí alguma obra sobre a oração?, perguntei.

- Gosto muito de livros sobre a oração. Eis um opúsculo recente, obra de um sacerdote de Petersburgo.

O senhor pegou um comentário sobre o Pai Nosso e começamos a ler. Logo chegou a senhora trazendo o chá, e as crianças carregando uma bandeja cheia de uma espécie de torta, de um tipo que eu jamais comera. O senhor pediu-me o livro, passou-o a senhora e disse:

- Ela irá nos ler; ela lê muito bem e enquanto isto nós nos reconfortamos.

A senhora começou a ler. Enquanto escutava, eu sentia a prece crescer em meu coração; quanto mais ela lia, mais a prece se desenvolvia e me regozijava. Subitamente, vi uma forma passar rapidamente no ar, como se fosse meu falecido estaroste. Fiz um movimento, mas, para disfarçar, eu disse: “Perdão, acho que cochilei”. Neste momento, tive a impressão de que o espírito de meu estaroste penetrava meu espírito e o iluminava, senti em mim como que uma grande claridade e tive numerosas idéias sobre a oração. Enquanto eu me persignava e esforçava-me para afastar essas idéias, a senhora terminou a leitura e o senhor perguntou-me se ela havia me agradado. Começamos a conversar.

- Gostei muito, disse eu; aliás o Pai Nosso é a mais elevada e mais preciosa de todas as orações escritas, pois foi o próprio Senhor Jesus Cristo quem no-la ensinou. O comentário que você leu é muito bom, mas é inteiramente voltado para a vida ativa do cristão, enquanto que eu li nos Padres uma explicação que é sobretudo mística e orientada para a contemplação.

- Em quais Padres você encontrou isto?

- Em Máximo o Confessor, por exemplo, e na Filocalia em Pedro Damasceno.

- Você se lembra do que eles dizem? Repita-nos, se puder.

- Certamente. Início da oração: Pai nosso que estais no céu. No livro que lemos, diz-se que estas palavras significam que é preciso amar fraternalmente ao nosso próximo, porque somos todos filhos do mesmo Pai. É muito justo, mas os Padres acrescentam a este um comentário mais espiritual – eles dizem que, ao pronunciar estas palavras, é preciso elevar o espírito ao Pai celeste, e lembrar da obrigação de estarmos a cada instante na presença de Deus. As palavras: seja santificado o vosso nome, são explicadas neste livro como o cuidado que devemos ter em não invocar o nome do Senhor em vão; mas os comentadores místicos vêem aí a demanda da prece interior do coração, ou seja, para que o nome de Deus seja santificado, é preciso que ele esteja gravado no interior do coração e que pela prece perpétua ele santifique e ilumine todos os sentimentos, todas as forças da alma. As palavras: venha a nós o vosso Reino, são explicadas assim pelos Padres: que venham aos nossos corações a paz interior, o repouso e alegria espiritual. No livro, diz-se que as palavras: dai-nos hoje o pão nosso de cada dia, dizem respeito às necessidades de nossa vida corporal, e ao que é necessário para ajudar o próximo. Mas Máximo o Confessor entende por “pão cotidiano” o pão celeste que nutre a alma, ou seja a palavra de Deus, e a união da alma com Deus pela contemplação e a prece perpétua no interior do coração.

- Ah!, a prece perpétua é uma obra difícil, ela é quase impossível àqueles que vivem no mundo, exclamou o senhor; é preciso toda a ajuda do Senhor para que possamos cumprir sem preguiça mesmo as orações comuns.

- Não fale assim, meu senhor. Se fosse uma tarefa além das forças humanas, Deus não a teria ordenado a todos: sua força aparece na fraqueza[69], e os Padres nos oferecem meios que facilitam o caminho para a prece interior.

- Eu jamais li nada de preciso a este respeito, disse o senhor.

- Se vocês quiserem, posso ler alguns extratos da Filocalia.

Tomei minha Filocalia, procurei uma passagem de Pedro Damasceno na terceira parte, na página 48, e li o que se segue:

“É preciso dedicar-se a invocar o nome do Senhor, mais do que a respiração, em todo o tempo, todo o lugar e todas as ocasiões. O Apóstolo disse: Orai sem cessar; com isto ele ensina que é preciso lembrar-se de Deus em todos os tempos, todos os lugares e todas as coisas. Se você fabrica alguma coisa, deve pensar no criador de tudo o que existe; se você vê a luz, lembre-se daquele que lha deu; se você observar o céu, a terra, o mar e tudo o que eles contêm, admire e glorifique aquele que os criou; se você se cobre com vestes, pense naquele de quem você as recebeu e agradeça-o, a ele que provê a sua existência. Em resumo, que todo movimento lhe seja motivo de celebrar o Senhor, assim você estará orando sem cessar e sua alma estará sempre alegre”

- Vejam como este procedimento é simples, fácil e acessível a todos aqueles que possuem um mínimo de sentimento humano.

Este texto agradou-os sobremaneira. O dono da casa abraçou-me com entusiasmo, agradeceu-me, olhou para a Filocalia e disse:

- É absolutamente necessário que eu adquira este livro; eu o encomendarei em Petersburgo; mas, para melhor lembrar-me, eu vou copiar imediatamente esta passagem que você leu. Dite para mim.

E ele a transcreveu rapidamente, com uma bela caligrafia. Depois exclamou:

- Meu Deus! Mas eu tenho justamente um ícone de são Damasceno (provavelmente era João Damasceno)!

Ele abriu o santuário e fixou sob o ícone o papel que acabara de escrever, dizendo:

- A palavra viva de um servidor de Deus colocada sob a imagem incitar-me-á a colocar em prática este conselho salutar constantemente.

Depois fomos jantar. Todos estavam à mesa ao mesmo tempo, homens e mulheres. Que silêncio recolhido, e que calma durante a refeição! Após o jantar, fomos todos à oração, inclusive as crianças, e me fizeram ler o hino a Jesus Dulcíssimo.

Os servidores foram repousar e nós permanecemos os três na sala. Então, a senhora me trouxe uma camisa branca e um par de meias. Eu me inclinei profundamente e disse-lhe:

- Minha senhora, não posso ficar com as meias, jamais as usei; os peregrinos usamos apenas tiras amarradas nas pernas.

Ela retornou logo com uma velha blusa amarela de lã, que cortou em tiras. Enquanto isto o senhor declarou que meus sapatos não valiam mais para nada, e trouxe-me um par inteiramente novo que ele usava por cima das botas.

- Vá àquele quarto, disse ele; não há ninguém e você poderá trocar sua roupa de baixo.

Troquei-me e voltei para a sala. Eles me fizeram sentar numa cadeira e puseram-se a calçar-me, o senhor enrolando as tiras nas minhas pernas e a senhora colocando-me os sapatos. No começo, eu não queria permitir, mas eles me fizeram sentar, dizendo:

- Sente-se e fique quieto, Cristo lavou o pé dos seus discípulos.

Não pude resistir e comecei a chorar; e eles choraram também.




***




Então a senhora saiu com as crianças para fazê-las dormir e fomos, o senhor e eu, ao jardim para nos entretermos no pavilhão. Passamos um longo tempo a velar, deitados no chão, conversando. De repente, ele se aproximou de mim e disse:

- Responda-me em consciência e em verdade, quem é você? Você deve ser de família nobre e finge seu simplório. Você lê e escreve perfeitamente, pensa e fala com correção; certamente você não recebeu a educação de um camponês.

- Eu falei de todo coração, a si e à sua senhora, contei minhas origens reais e jamais pensei em mentir nem enganar. E que objetivo teria? Aquilo que eu digo não vem de mim, mas de meu sábio e falecido estaroste ou dos Padres que tenho lido; e a prece interior que, mais do que tudo, ilumina minha ignorância, não fui eu que a adquiri; ela nasceu em meu coração pela misericórdia divina e graças aos ensinamentos do estaroste. Qualquer pessoa pode fazer o mesmo; basta mergulhar um pouco mais silenciosamente em seu coração e invocar u pouco mais o nome de Jesus Cristo, e logo descobrimos a luz interior, tudo se torna claro, e nesta claridade aparecem certos mistérios do Reino de Deus. E já é um grande mistério quando o homem descobre esta capacidade de penetrar em si, de se conhecer verdadeiramente e de chorar docemente sua queda e sua vontade pervertida. Não é difícil pensar sadiamente e falar com as pessoas, isto é uma coisa possível porque o espírito e o coração existem anteriormente à ciência e a sabedoria humanas. Sempre podemos cultivar o espírito pela ciência ou pela experiência; mas aonde a inteligência não é requerida, nenhuma educação terá efeito. O que acontece, é que estamos longe de nós mesmos e quase não aspiramos a nos aproximar, fugimos sempre para não estarmos cara a cara com nós mesmos, preferimos as migalhas à verdade e pensamos: eu bem que gostaria de ter uma vida espiritual, ocupar-me da oração, mas eu não teno tempo, os negócios e a premência da vida me impedem de dedicar-me à prece verdadeiramente. Mas o que é mais importante e mais necessário, a vida eterna da alma santificada, ou a vida passageira do corpo, pelo qual nos fazemos tantos danos? É assim que as pessoas chegam, seja à sabedoria, seja à bestialidade.

- Perdoe-me, meu amigo, eu não falei por simples curiosidade, mas por fraternidade e sentimento cristão, e também porque há dois anos encontrei um caso parecido com o seu.

Um dia chegou aqui um velho mendigo muito enfraquecido; ele tinha um passaporte de soldado que deu baixa e era tão pobre que andava quase nu; ele falava pouco e parecia ser um camponês. Nós o recebemos no asilo; ao cabo de cinco dias, ele caiu doente, transportamo-lo para o pavilhão e minha esposa e eu nos ocupamos inteiramente dele. Quando ficou evidente que ele iria morrer, nosso sacerdote confessou-o, deu-lhe a comunhão e os últimos sacramentos. Na véspera de sua morte, ele levantou-se, pediu papel e pena, e insistiu para que a porta ficasse fechada e que ninguém entrasse enquanto ele escrevia seu testamento, que eu deveria fazer chegar a seu filho, em Petersburgo. Fiquei estupefato quando vi que ele escrevia com perfeição e que suas frases eram perfeitamente concebidas, elegantes e cheias de ternura. Amanhã lhe mostrarei este testamento, do qual guardei uma cópia. Tudo isso espantou-me sobremaneira e, levado pela curiosidade, pedi-lhe que me contasse sua origem e sua vida. Ele me fez jurar que não contaria a ninguém antes de sua morte e para glória de Deus fez-me o seguinte relato:

- Eu fui príncipe, e muito rico; levava a vida mais dissipada, mais brilhante, mais luxuosa possível. Minha esposa falecera e eu vivia com meu filho que era capitão da Guarda. Uma noite, quando me preparava para ir a um baile, enfureci-me com meu criado de quarto; em minha exasperação, eu bati-lhe na cabeça e ordenei que o levassem para a sua aldeia. Isto aconteceu pela noite e, na manhã seguinte, meu criado havia morrido de congestão cerebral. Mas eu não dei grande importância a isto e, mesmo arrependendo-me de minha violência, esqueci por completo o acontecido. Passadas uma seis semanas, meu criado começou a aparecer-me em sonhos; ele vinha importunar-me a cada noite e me censurava, repetindo sem cessar: Homem sem consciência, você me assassinou! Depois, passei a vê-lo mesmo acordado. A aparição tornou-se cada vez mais freqüente e, no final, ele ficava quase todo o tempo ao meu lado. No fim, junto com ele, comecei a ver outros mortos, homens que eu havia ofendido grosseiramente, mulheres que eu havia seduzido. Todos me censuravam e não me davam repouso, de tal maneira que eu já não podia dormir ou comer, ou fazer fosse lá o que fosse; eu estava no fim de minhas forças e a pele me colava aos ossos. Os esforços dos melhores médicos não deram nenhum resultado. Parti para tratar-me no estrangeiro, mas, depois de sei meses de tratamento, não apenas não tinha tido nenhuma melhora, como as terríveis aparições só faziam aumentar. Voltei mais morto do que vivo; minha alma, antes de separar-se do corpo, havia conhecido plenamente as torturas do inferno; a partir de então acreditei no inferno e sei o que ele significa.

Em meio a estes tormentos, compreendi enfim minha infâmia, arrependi-me, confessei-me, liberei todos os meus servidores e fiz o voto de passar o resto de minha vida nos trabalhos mais duros e de me esconder sob as vestes de mendigo a fim de me tornar o servidor mais humilde das pessoas da mais baixa condição.

Bastou tomar firmemente esta decisão e as aparições cessaram por completo. Minha reconciliação me trouxe tal alegria, tamanho sentimento de conforto, que não consigo expressar. Compreendi então, também pela experiência, o que é o paraíso e como o reino de Deus pode se derramar no interior de nosso coração. Logo eu estava completamente curado, e assim coloquei meu projeto em execução; munido do passaporte de um antigo soldado, deixei em segredo o local onde nascera. Já faz quinze anos que eu vago pela Sibéria. Às vezes, ofereço minha força de trabalho – na medida de minhas possibilidades – aos camponeses, às vezes mendigo em nome de Cristo. Ah! Em meio a estas privações, quanta felicidade experimentei! Que beatitude, que paz de consciência! Só o podem compreender aqueles a quem a misericórdia divina tirou do inferno da dor para transportá-lo ao paraíso de Deus.

Depois disto, ele me entregou o testamento para enviá-lo ao filho e, no dia seguinte, faleceu.

- Veja, eu tenho uma cópia deste testamento dentro da Bíblia que está no meu casaco. Se você quiser lê-lo, eu lhe mostrarei. Ei-lo aqui!

Desdobrei o papel e li:

“Meu querido filho!

Já faz quinze anos que você não vê seu pai, mas, na sua obscuridade ele recebeu às vezes notícias suas e sempre nutriu por você um amor paternal. É este amor que o empurra a enviar-lhe estas últimas palavras para que elas lhe sirvam de lição de existência.

Você sabe como eu sofri para resgatar minha vida irresponsável e culposa; mas você não sabe a felicidade que me trouxeram, durante minha vida errante, os frutos de meu arrependimento.

Morro em paz junto ao meu benfeitor que é também o seu, pois as benesses trazidas ao pai devem alcançar o filho afetuoso. Exprima a ele meu reconhecimento por todos os meios ao seu alcance.

Ao deixar-lhe minha bênção paternal, eu o exorto a que você se lembre de Deus e que obedeça à sua consciência: seja bom, prudente e razoável; trate com benevolência os seus subordinados, não despreze os mendigos e os peregrinos, lembrando-se que só o despojamento e a vida errante permitiram ao seu pai encontrar o repouso de sua alma.

Rezando a Deus para que lhe conceda sua graça, eu fecho os olhos tranqüilamente, na esperança da vida eterna pela misericórdia do Redentor dos homens, Jesus Cristo.”

Assim conversávamos, o senhor e eu. Então eu lhe disse:

- Penso que muitas vezes vocês devem ter aborrecimentos no asilo. Existem tantos irmãos nossos que se tornam peregrinos apenas por desleixo ou por preguiça, e que são licenciosos pelo caminho, como já vi muitas vezes.

- Não, esses são muito raros, respondeu o senhor. Nós praticamente só encontramos peregrinos. Mas quando eles não têm o ar muito sério, aí é que somos ainda mais gentis e os colocamos no hospital por algum tempo. Ao contato com nossos pobres, irmãos de Cristo, muitos deles se corrigem e saem daqui com um coração humilde e doce. Não faz muito tempo, tive um exemplo. Um comerciante de nossa cidade havia caído tão baixo que era expulso dos lugares a golpes de bastão e ninguém mais queria dar-lhe sequer um pedaço de pão. Ele era bêbado, violento, brigão, e ainda por cima roubava. Foi assim que ele chegou um dia a nós, premido pela fome; ele pediu pão e água da vida, pois ele gostava muito de beber. Nós o recebemos gentilmente e dissemos: “Fique conosco, você terá tanta água da vida quanto quiser, mas com uma condição: depois de beber, você irá se deitar e se fizer o menor escândalo, não só o expulsaremos para sempre como ainda daremos queixa ao delegado para que o encarcere por vagabundagem.” Ele aceitou e ficou conosco. Durante uma semana ou mais, ele de fato bebeu tudo o que quis; mas a cada vez, conforme sua promessa e também porque ele não queria se ver privado de álcool, ele ia se deitar em sua cama ou estender-se quietinho no fundo do jardim. Quando ele recobrava seus sentidos, nossos irmãos do asilo lhe falavam e exortavam-no a controlar-se ao menos um pouco. Assim, ele começou a beber menos e em três meses ele voltou a ficar sóbrio, Hoje em dia ele está trabalhando e não come mais do pão dos outros. Ainda anteontem ele veio me ver.

Quanta sabedoria nesta disciplina guiada pela caridade!, pensei eu, e exclamei:

- Bendito seja Deus, cuja misericórdia age em sua casa!

Depois de tudo isso, nós cochilamos um pouco e, ao ouvirmos o sino soar o ofício da manhã, fomos à igreja, na qual já estava a senhora com as crianças. Nós ouvimos o ofício e depois a santa liturgia. Ficamos o senhor, o menino e eu no coro, enquanto a senhora e a menina colocaram-se à porta da iconostase para ver a elevação dos Santos Dons. Meu Deus, como eles oravam, e que lágrimas de alegria vertiam! Seus rostos estavam de tal modo iluminados que, olhando-os, comecei a chorar!

Ao final do ofício, o senhor e a senhora, o sacerdote, os servidores e todos os mendigos sentaram-se juntos à mesa; havia bem umas quarenta mendigos, enfermos, doentes e crianças. Que silêncio e que paz ao redor daquela mesa! Juntando coragem, eu disse baixinho ao dono da casa:

- Nos mosteiros, lêem-se as vidas dos santos durante as refeições; aqui poderia ser feito o mesmo, já que você possui o Menólogo completo.

O senhor voltou-se para sua esposa e lhe disse:

- Verdadeiramente, Maria, é preciso instituir isto aqui. Será excelente para todos nós. Eu lerei na primeira refeição, depois será a sua vez, depois a do padre, e também nossos irmãos, cada um na sua vez e conforme o que souber.

O padre parou de comer e disse:

- Escutar, escutarei com prazer, mas quanto a ler... Eu não tenho um instante sequer livre! Mal ponho os pés em casa e já não consigo encostar a cabeça, tudo são afazeres e preocupações; é preciso isto, é preciso aquilo; um bando de crianças; o gado no campo; o dia todo se passa entre estas bobagens e não me resta um minuto para ler e instruir-me. Tudo o que aprendi no seminário, há muito tempo esqueci.

Eu tremi diante destas palavras, mas a senhora segurou-me o braço e me disse:

- O padre fala assim por humildade, ele sempre se rebaixa, mas é um homem excelente e piedoso; ele ficou viúvo depois de vinte anos, ele educa todos os seus filhos e ademais ele também diz sempre os ofícios.

Estas palavras me lembraram uma frase de Nicetas Stétatos na Filocalia:

“É conforme a disposição interior da alma que apreciamos a natureza dos objetos”, ou seja, cada qual forma uma idéia dos outros segundo aquilo que ele próprio é; mais adiante, ele diz ainda: “Quem chegou à prece e ao amor verdadeiro não distingue o justo do pecador, mas ama igualmente a todos os homens e não os condena, assim comoDeus faz brilhar o sol e cair a chuva sobre os bons e os ruins.[70]

Fez-se silêncio novamente; diante de mim estava sentado um mendigo do asilo, completamente cego. O dono da casa lhe dava de comer, partia seu peixe, estendia-lhe a colher e lhe dava de beber. Eu o observava com atenção e verifiquei que, em sua boca sempre entreaberta, a língua movia-se constantemente; eu me perguntei se ele não estaria recitando a prece e p observei com mais cuidado. Ao fim da refeição, uma senhora idosa passou mal, ela sufocava e gemia. O senhor e a senhora levaram-na para seu quarto e a estenderam sobre o leito; a senhora ficou lá para cuidar dela, o padre foi buscar os santos óleos por via das dúvidas e o senhor ordenou que selassem um cavalo para ir a galope buscar um médico na cidade. Todos se dispersaram.

Eu tinha em mim como que uma fome de oração; sentia um violento desejo de deixá-la jorrar, pois já fazia dois dias que eu não tinha silêncio nem tranqüilidade. Sentia em meu coração uma espécie de onda prestes a transbordar e espalhar-se pelos meus membros, e, como eu a retinha, senti uma forte dor no coração – mas uma dor benéfica, que simplesmente me empurrava à oração e a o silêncio. Compreendi então porque os verdadeiros adeptos da prece perpétua fogem do mundo e se escondem longe de todos; também entendi porque o bem-aventurado Hesíquio diz que a conversa mais elevada não passa de baboseiras, se se prolonga demais, e lembrei-me das palavras de são Efraim o Sírio: “A palavra é de prata, mas o silêncio é de ouro.” Pensando nessas coisas, cheguei ao hospital; todos dormiam após a refeição. Subi à minha cama, acalmei-me, repousei e rezei um pouco. Quando os mendigos despertaram, fui procurar o cego e o encontrei no jardim; sentamo-nos num canto isolado e começamos a conversar.

- Diga-me, em nome de Deus, e pelo bem da minha alma, você recita a prece de Jesus?

- Já faz muito tempo que a repito sem cessar.

- Que efeito você sente?

- Somente que não posso passar sem ela nem de dia nem de noite.

- E como Deus lhe revelou esta atividade? Conte-me isto em detalhe, meu querido irmão.

- Pois bem, eu era um artesão daqui, ganhava meu pão costurando, viajava pelos outros estados, pelas cidades, e costurava para os camponeses. Numa aldeia, aconteceu-me de ficar por longo tempo na casa de um camponês para vestir toda sua família. Num dia de festa, em que não tinha nada para fazer, vi três velhos livros numa prateleira colocada logo abaixo dos ícones. Eu perguntei: “Alguém de vocês sabe ler?” Eles responderam: “Ninguém; estes livros herdamo-los de um tio que conhecia as letras.”

Tomei um dos livros, abri-o ao acaso e li as seguintes palavras, das quais me lembro até hoje: “A prece perpétua consiste em invocar sem cessar o nome do Senhor; sentado ou em pé, à mesa ou no trabalho, em toda ocasião, em todo local e todo o tempo, é preciso invocar o nome do Semhor.”

Refleti sobre o que havia lido e achei que isto me convinha e muito; assim que, enquanto costurava, comecei a repetir baixinho a oração, e logo fiquei alegre. As pessoas que viviam comigo na izba perceberam isto e se divertiram comigo: “Virou feiticeiro, murmurando sem parar? Ou anda fazendo círculos de magia?”

Para disfarçar, deixei de mover os lábios e passei a dizer a oração apenas movendo a língua. Por fim, habituei-me a isto de tal maneira que minha língua a recita dia e noite e isto me faz um grande bem.

Continuei a trabalhar por muitos anos e um dia, subitamente, fiquei cego; em nossa família, muito têm a água escura no fundo dos olhos. Como sou muito pobre, a comunidade conseguiu-me um lugar no asilo em Tobolsk. É para lá que eu vou, mas o senhor e a senhora me retiveram, pois querem me conseguir um transporte para ir até lá.

- Como se chamava o livro que você leu? Não seria a Filocalia?

- Por minha fé, não sei. Não cheguei a ver o título.

Fui buscar minha Filocalia. Encontrei na quarta parte as palavras do patriarca Calixto que ele havia dito de cor e comecei a ler.

- É isto mesmo,exclamou o cego. Leia, leia, meu irmão, está muito bom.

Quando eu cheguei à passagem onde é dito: é preciso orar com o coração, ele me perguntou o que isto significava e como se praticava. Eu lhe disse que todo o ensinamento da prece do coração estava exposto neste livro, a Filocalia, e ele me pediu com insistência que lhe lesse tudo o que a ela se referia.

- Eis o que faremos, disse-lhe eu. Quando você pensa partir para Tobolsk?

- Imediatamente, se você quiser, respondeu ele.

- Então, está resolvido. Eu irei partir amanhã; tudo o que temos a fazer é partirmos juntos e pelo caminho eu lerei tudo o que se refere à prece do coração e lhe indicarei como descobrir seu coração e nele penetrar.

- E o transporte?, disse ele.

- Deixe o transporte para lá! Daqui a Tobolsk não há mais do que cento e cinqüenta verstas, iremos lentamente; a dois, sozinhos, é bom caminhar; e caminhamos estamos na melhor situação para ler e para falarmos sobre a prece.

Assim, ficamos de acordo; à noitinha, o próprio dono da casa veio nos chamar para o jantar e, depois de termos comido, dissemos-lhe que pensávamos em irmos e que não tínhamos necessidade de transporte, pois desejávamos ler a Filocalia.

- Este livro agradou-me muito; já escrevi uma carta, separei o dinheiro e amanhã, quando for ao tribunal, enviarei tudo a Petersburgo para que me tragam uma Filocaliajá no próximo correio.

E assim, na manhã seguinte, colocamo-nos a caminho depois de termos agradecido o senhor e a senhora donos da casa por sua caridade e doçura exemplares; eles nos acompanharam ainda por cerca de suas verstas e depois nós nos demos adeus.




O CAMPONÊS CEGO




Avançávamos lentamente, o cego e eu, sem fazermos mais do que dez ou quinze verstas por dia, e o restante do tempo sentávamo-nos em lugares isolados e líamos a Filocalia. Eu li para ele tudo o que se referia à prece do coração, seguindo a ordem indicada pelo meu estaroste, ou seja começando pelos livros de Nicéforo o Monge, depois Gregório o Sinaíta e assim por diante. Quanta atenção e ardor ele colocava em escutar tudo isto! Como ele estava feliz e emocionado! Logo ele começou a fazer-me perguntas sobre a oração que meu espírito não era suficiente para responder.

Depois de ter escutado minha leitura, o cego pediu-me que lhe ensinasse um método prático para encontrar seu coração pelo espírito, para introduzir nele o nome divino de Jesus Cristo e orar assim interiormente com o coração. Eu lhe disse:

- Sem dúvida, você não enxerga nada, mas com a inteligência você pode se representar coisas que você já viu, como um homem, um objeto ou um dos seus membros, seu braço ou sua perna; você consegue imaginá-los com tanta clareza como se os estivesse vendo, e consegue, embora cego, dirigir seu olhar a eles?

- Eu posso, respondeu o cego.

- Então represente assim para si seu coração, volte seus olhos para ele como se o estivesse vendo através de seu peito, e escute com seus ouvidos como ele bate a cada batida. Quando você estiver prático nisto, esforce-se por ajustar a cada batida do coração, sem perdê-lo de vista, as palavras da prece. Com o primeiro batimento, diga ou pense: Senhor, com o segundo: Jesus, com o terceiro: Cristo, com o quarto:tem piedade, e com o quinto: de mim, e repita muitas vezes este exercício. Isto lhe será fácil, porque você já está preparado para a prece do coração. Depois, quando você estiver habituado a esta atividade, comece a introduzir em seu coração a prece de Jesus e faça-a sair juntamente com a respiração, ou seja que, inspirando o ar, diga ou pense: Senhor Jesus Cristo, e ao expirar: tem piedade de mim! Se você agir assim freqüentemente, e por tempo suficiente, logo você sentirá uma ligeira dor no coração, depois pouco a pouco nascerá nele um calor benfazejo. Com a ajuda de Deus, você chegará assim à ação constante da prece no interior do coração. Mas sobretudo evite qualquer representação, qualquer imagem que venha a nascer em seu espírito enquanto você reza. Expulse todas as imaginações; poisos Padres nos ordenam, a fim de que não caiamos na ilusão, manter o espírito vazio de todas as formas durante a oração.

O cego, que havia me escutado com atenção, exercitou-se com zelo naquilo que eu lhe havia dito e, à noite, em cada etapa, ele dedicava-se a isto por longas horas. Ao cabo de cinco dias, ele sentiu no coração um forte calor, e uma felicidade indizível; por outro lado, ele sentia um grande desejo de se dedicar sem parada à oração, que lhe revelava o amor que ele sentia por Jesus Cristo. Às vezes, ele via uma luz, mas sem que nenhum objeto aparecesse; quando ele penetrava em seu coração, parecia-lhe ver aí brotar a chama brilhante de uma grande tocha que, escapando para fora, iluminava tudo; e esta chama lhe permitia inclusive enxergar objetos afastados, como aconteceu uma vez.

Nós atravessávamos uma floresta, e ele estava mergulhado, silencioso, na oração. De repente, ele disse:

- Que lástima! A igreja está em chamas e a torre acaba de desabar!

- Pare de evocar imagens estéreis, eu lhe disse, isto é uma tentação. É preciso repelir o mais depressa possível qualquer sonho. Como enxergar o que se passa na vila? Ela ainda dista dez verstas daqui.

Ele obedeceu-me e, voltando a rezar, calou-se. Por volta do entardecer, chegamos à vila e eu vi de fato muitas casas incendiadas e a torre caída – ela era construída com vigamento de madeira; as pessoas ao redor discutiam e se admiravam que ao tombar a torre não tivesse atingido ninguém. Pelo que pude entender, o infortúnio havia se produzido no mesmo instante em que o cego falara dele na floresta. No mesmo instante, pude ouvi-lo dizer:

- Segundo você, minha visão era estéril, mas veja o que aconteceu. Como não agradecer e amar a o Senhor Jesus Cristo que revela sua graça aos pecadores, aos cegos e aos insensatos! E agradeço também a você, que me ensinou a atividade do coração!

Eu lhe respondi:

- Quanto a amar a Jesus Cristo, ame-o, e quanto a agradecê-lo, agradeça-o; mas guarde-se de considerar qualquer visão como uma revelação direta, pois isto se produz naturalmente conforme a ordem das coisas. A alma humana não está inteiramente ligada à matéria. Ela pode ver na escuridão, e tanto os objetos distantes quanto os próximos. Mas nós não desenvolvemos esta faculdade da alma, pois estamos curvados ao peso de nosso corpo grosseiro ou sob a confusão de nossos pensamentos distraídos e superficiais. Quando nos concentramos sobre nós mesmos, quando nos abstraímos de tudo o que nos cerca e aguçamos nosso espírito, então a alma retorna completamente a si mesma e passa a agir com toda a sua força; esta é uma ação natural. Meu falecido estaroste me disse que mesmo quem não se dedica à prece, por exemplo enfermos ou pessoas especialmente dotadas, quando colocadas numa câmara escura, vêem a luz que se desprende de cada objeto, sentem a presença de seu duplo e penetram nos pensamentos dos outros. Mas os efeitos diretos da graça de Deus, durante a prece do coração, são de tal modo deliciosos que nenhuma língua os pode descrever: é impossível compará-los com qualquer coisa de material; o mundo sensível é rasteiro, comparado com as sensações que a graça revela no coração.

O cego escutou estas palavras com atenção e tornou-se ainda mais humilde; a prece desenvolvia-se sem cessar em seu coração e ele rejubilava-se indescritivelmente. Minha alma estava feliz e eu agradecia ao Senhor que me havia feito encontrar tamanha piedade em um de seus servidores.

Por fim chegamos a Tobolsk; eu o acompanhei ao asilo e, após nos termos despedido afetuosamente, retomei meu caminho solitário.

Durante um mês, segui lentamente e sentia como os exemplos vivos são úteis e benéficos. Eu lia freqüentemente a Filocalia e nela verificava tudo o que eu havia dito ao cego. Seu exemplo inflamava meu zelo, meu devotamento e meu amor pelo Senhor. A prece do coração me fazia tão feliz com eu jamais pensara possível sobre a terra, e eu me perguntava como as delícias do reino dos céus poderiam ser ainda maiores. Esta felicidade não iluminava apenas o interior de minha alma; também o mundo exterior me aparecia sob um aspecto arrebatador, tudo me conclamava a amar e louvar a Deus; os homens, as árvores, as plantas, os animais, tudo me parecia familiar e por toda parte eu encontrava a imagem do nome de Jesus Cristo; às vezes, sentia-me tão leve que pensava não possuir mais um corpo e estar flutuando no ar; às vezes, eu penetrava inteiramente em mim mesmo. Eu via claramente meu interior e me admirava com o fantástico edifício que é o corpo humano; às vezes, sentia uma alegria tão grande que, se tivesse me tornado rei, no meio de todas estas consolações, pediria a Deus que me permitisse morrer o mais breve possível para transbordar a seus pés meu reconhecimento no mundo dos espíritos.

Sem dúvida, eu sentia grande prazer nestas sensações, ou talvez tivesse Deus decidido assim, mas depois de algum tempo senti em meu coração um temor e um tremor. Seria, pensei, um novo infortúnio ou uma tribulação como a que passei por causa da jovem a quem ensinei a prece de Jesus na capela? Os pensamentos me acabrunhavam como nuvens e eu me lembrei das palavras de João Cárpatos, que diz que o mestre é muitas vezes jogado na desonra e suporta tentações e tribulações por causa daqueles a quem ajudou espiritualmente. Depois de lutar contra esses pensamentos, mergulhei na prece que fez com que desaparecessem completamente. Senti-me mais forte e disse a mim mesmo: Seja feita a vontade de Deus! Estou pronto a suportar tudo o que Jesus Cristo me enviar para expiar minha teimosia endurecida e meu orgulho. De resto, aqueles a quem eu revelara recentemente o mistério da prece interior tinham sido preparados para ela pela ação misteriosa de Deus antes de me encontrar. Este pensamento acalmou-me e voltei a caminhar com a oração e com alegria, ainda mais feliz do que antes. Durante dois dias, o tempo permaneceu chuvoso e a estrada estava tão enlameada que mal se conseguia sair dos alagadiços; segui pela estepe e por quinze verstas não encontrei nenhum lugar habitado; enfim, perto do anoitecer, percebi um albergue à beira do caminho, e alegrei-me pensando que ali poderia ao menos repousar e passar a noite. Amanhã pela manhã, se Deus quiser, o tempo será melhor.




O POSTO DOS CORREIOS




Ao me aproximar, vi um velho vestido com uma capa de soldado; ele estava agachado diante do albergue e tinha aspecto de ter bebido. Eu o saudei e disse:

- A quem posso pedir autorização para passar a noite aqui?

- Quem pode deixá-lo entrar, senão eu?, exclamou o velho; eu sou o chefe aqui! Eu sou o encarregado dos correios e aqui é o posto de troca dos animais.

- Então, meu senhor, permita-me passar a noite aqui.

- E você, por acaso possui ao menos um passaporte? Mostre-me seus papéis!

Eu lhe dei meu passaporte e, com ele nas mãos, ele voltou a exclamar:

- Onde está seu passaporte?

- Você o tem nas mãos, disse-lhe eu.

- Pois bem, entremos então.

O encarregado dos correios colocou seus óculos, olhou meu passaporte e disse:

- Tudo parece estar em regra, pode permanecer aqui; como você vê, eu sou um homem rígido; espere, vou lhe trazer um copo.

- Eu nunca bebo, respondi.

- Oh, está bem! Mas ao menos, jante conosco.

Ele sentou-se à mesa com a cozinheira, uma jovem que não havia bebido pouco também, e eu instalei-me junto com eles. Durante toda a refeição, eles não cessaram de discutir e censurar-se mutuamente e, no final, estalou uma verdadeira briga. O encarregado foi dormir no quarto destinado às provisões e a cozinheira ficou lavando as panelas e os talheres enquanto imprecava contra o velho.

Eu estava sentado e, vendo que ela não se acalmava, disse:

- Aonde posso dormir, mãezinha? Estou muito cansado.

- Vou arrumar-lhe uma boa cama, paizinho.

Ela colocou um banco junto ao que havia sob a janela da frente e estendeu uma coberta de feltro e uma almofada. Eu me deitei e fechei os olhos, simulando dormir. Por muito tempo ainda a cozinheira agitou-se para lá e para cá através do cômodo; enfim, ela terminou suas tarefas, apagou a luz e aproximou-se de mim. Abruptamente, a janela que ficava no canto da edificação despedaçou-se com um barulho terrificante, as folhas, o vidro, os montantes tudo voou em pedaços; ao mesmo tempo, ouvimos do lado de fora gemidos, gritos e um ruído como de luta. A mulher, aterrorizada, correu para o meio do cômodo e caiu por terra. Eu saltei do banco, achando que a terra abria-se sob meus pés. Subitamente, vi dois cocheiros que traziam para dentro da izba um homem todo coberto de sangue, a ponto de não se ver seu rosto. Era um correio do Estado que deveria trocar de cavalos. O cocheiro calculara mal a curva e o varão atingira a janela; mas, como havia uma valeta diante da izba, a carroça havia tombado e o correio havia machucado a cabeça contra um poste pontudo que sinalizava a entrada. O correio pediu água e álcool para lavar seu ferimento. Ele o molhou com água da vida, depois tomou um copo e exclamou:

- Os cavalos!

Eu me aproximei dele e disse:

- Como você poderá viajar com este ferimento?

- Um correio não tem tempo para ficar doente, respondeu ele, e saiu.

Os cocheiros colocaram a mulher num canto perto da poêle e a cobriram com uma colcha, dizendo: “Foi o medo que lhe fez isto.” Quanto ao encarregado do posto, ele tomou seu copo e voltou a dormir. Eu permaneci só.

Logo a mulher se levantou e se pôs a caminhar de um lado para ouro, como uma sonâmbula; afinal, ela saiu da casa. Fiz uma oração e, sentindo-me enfraquecido, adormeci um pouco antes da aurora.

Pela manhã, disse adeus ao encarregado do posto e, caminhando pela estrada, elevei minhas orações com fé, esperança e reconhecimento ao Pai das misericórdias e de todas as consolações, que havia afastado de mim um desastre eminente.

Seis anos depois destes eventos, passando por um convento de freiras, entrei na igreja para rezar. A abadessa recebeu-me amavelmente após o ofício e me fez servirem chá. Logo, chamaram-na para receber alguns hóspedes de passagem; ela foi ao seu encontro e me deixou com as irmãs que a serviam. Vendo uma delas que vertia humildemente o chá, tive a curiosidade de lhe perguntar:

- Faz muito tempo, mãezinha, que você está neste convento?

- Cinco anos, respondeu-me ela; quando me trouxeram para cá, eu já não tinha mais minha cabeça no lugar, mas Deus teve piedade de mim. A madre abadessa colocou-me perto dela em uma cela e fez-me pronunciar os votos.

- E como perdeu você seu espírito?

- De medo. Eu trabalhava em um posto dos correios. Uma noite, enquanto eu dormia, os cavalos derrubaram uma janela e, de terror, eu enlouqueci. Durante um ano, meus pais me levaram aos lugares santos. Mas somente aqui eu fui curada.

Diante destas palavras, eu me regozijei em minha alma e glorifiquei a Deus cuja sabedoria faz girar tudo em nosso benefício.




UM SACERDOTE DO CAMPO




Eu tive muitas outras aventuras, disse eu dirigindo-me ao meu pai espiritual. Se eu as quisesse contar todas, três dias não bastariam. Mas se você quiser, posso lhe contar mais uma.

Num claro dia de verão, vi a alguma distância da estrada um cemitério, ou antes uma comunidade paroquial, vale dizer uma igreja com as casas dos servidores do culto e um cemitério. Os sinos soavam para o ofício; eu corri para a igreja. As pessoas do lugar dirigiam-se também para lá; mas muitos sentavam-se na grama diante da igreja antes de entrar, e, vendo que eu me apressava, disseram-me:

- Não vá tão depressa, você tem tempo; aqui, o serviço é muito lento, o padre está doente, e além disso é vagaroso!

De fato, a liturgia não foi rápida; o jovem padre, pálido e descarnado, celebrava com lentidão, mas com piedade e sentimento; ao final da missa, ele pronunciou um excelente sermão sobre os meios de se adquirir o amor de Deus.

O padre convidou-me para comer com ele. Durante a refeição, eu lhe disse:

- Você diz o ofício com grande piedade, meu pai, mas muito devagar!

- Sim, respondeu ele, isto não me faz muito agradável aos paroquianos, eles cochilam, mas não há o que fazer; pois eu gosto de meditar e pesar cada palavra antes de cantá-la; privadas deste sentimento interior, as palavras não têm nenhum valor, nem para si nem para os outros. Tudo reside na vida interior e na prece atenta! Ah!, como as pessoas se ocupam pouco da atividade interior!, acrescentou. É porque as pessoas não querem mais, não sentem necessidade de iluminação espiritual interior.

Eu perguntei novamente:

- Mas como chegar a isto? É uma coisa muito difícil!

- Nem um pouco; para receber a iluminação espiritual e tornar-se um homem interior, basta tomar um texto qualquer da santa Escritura e nele concentrar toda a atenção pelo maior tempo possível. É assim que se descobre a luz da inteligência. Para orar, é preciso fazer o mesmo: se você quiser que a prece seja pura, direita e benéfica, escolha uma oração curta, composta de poucas palavras, breves mas fortes, e repita-a muitas vezes, por muito tempo; é assim que tomamos gosto pela oração.

Este ensinamento do padre agradou-me muito porque ele era prático e simples e ao mesmo tempo profundo e sábio. Agradeci a Deus em espírito por me haver dado a conhecer um verdadeiro pastor de sua Igreja.

No final da refeição, o padre disse:

- Vá repousar um pouco, eu preciso ler a Palavra de Deus e preparar meu sermão de amanhã.

Eu me retirei para a cozinha. Não havia ninguém senão a velha cozinheira, sentada encurvada a um canto, tossindo de vez em quando. Sentei-me sob uma lâmpada, tirei minha Filocalia do saco e me pus a ler em voz baixa; ao fim de um certo tempo, me dei conta de a velha sentada no canto recitava sem parar a prece de Jesus. Fiquei feliz de escutar invocar assim o Santo Nome do Senhor e lhe disse:

- Como lhe fica bem, mãezinha querida, recitar assim a prece! É a melhor obra e a mais cristã!

- Sim, respondeu-me ela, nestes anos de declínio meu contentamento é que o Senhor me perdoe!

- Há muito tempo você reza assim?

- Desde a minha juventude, paizinho; e sem isto eu não poderia viver, pois a prece de Jesus salvou-me da infelicidade e da morte.

- Como assim? Conte-me, eu lhe peço, para glória de Deus e em honra da benfazeja prece de Jesus.

Coloquei minha Filocalia no saco, sentei-me perto dela e ela começou seu relato:

- Eu era uma menina, jovem e alegre; meus pais conseguiram-me um noivo; mas, na véspera do casamento, meu noivo entrou em nossa casa, bruscamente, e não havia dado nem dez passos quando caiu morto! Isto me assustou de tal maneira que decidi renunciar ao matrimônio e dirigir-me aos santos lugares para rezar a Deus. Entretanto, eu tinha receio de partir sozinha pelas estradas, pois, em minha juventude, as pessoas desonestas poderiam me atacar. Uma velha senhora que há muito tempo levava uma vida errante me ensinou que eu precisava recitar sem cessar a prece de Jesus e me assegurou decididamente que esta oração me preservaria de todos os perigos no caminho. Eu acreditei no que ela me disse e jamais me aconteceu nada, mesmo nas regiões mais afastadas; meus pais me davam dinheiro para viajar. Ao envelhecer, tornei-me doente, e felizmente o padre daqui me abrigou e me mantém em sua bondade.

Escutei com alegria este relato e não sabia como agradecer a Deus por este dia que me revelara exemplos tão edificantes. Um pouco mais tarde, pedi a este bom e santo padre que me abençoasse e retomei meu caminho, feliz.




A CAMINHO DE KAZAN




E veja, há não muito tempo, quando atravessava a província de Kazan para chegar até aqui, foi-me dado ainda conhecer os efeitos da prece de Jesus; mesmo para aqueles que a praticam inconscientemente, ela é de fato o meio mais seguro e rápido de atingir os bens espirituais.

Num entardecer, eu tive que parar numa aldeia tártara. Ao entrar na rua da aldeia, percebi diante de uma casa uma carruagem com um cocheiro russo; os cavalos estavam desatrelados e pastavam por perto. Todo contente, decidi pedir para pernoitar nesta casa, aonde ao menos eu encontraria cristãos. Aproxime-me e perguntei ao cocheiro quem ele conduzia. Ele respondeu que seu patrão fazia o caminho de Kazan à Criméia. Enquanto eu falava com o cocheiro, o patrão afastou a cortina de couro da portinhola, lançou um olhar sobre mim e disse:

- Eu vou passar a noite aqui, mas eu não entro em casas de Tártaros porque são muito sujas; assim, decidi dormir na carruagem.

Algum tempo depois, o senhor saiu para dar alguns passos – estava um belo entardecer – e nós entabulamos uma conversação. Trocamos muitas perguntas e ele me contou o que segue:

- Até os sessenta e cinco anos eu servi na marinha como capitão de navios. Ao envelhecer, tive gota e pedi a aposentadoria na Criméia, numa propriedade de minha esposa; eu estava quase sempre doente. Minha esposa gostava muita das recepções, e adorava jogar cartas. Ela se cansou de estar vivendo sempre com um doente e foi-se para Kazan viver com nossa filha que desposara um funcionário do governo; ela levou tudo consigo, inclusive os criados domésticos, e deixou-me como serviçal apenas um menino de oito anos, meu afilhado.

Eu permaneci assim só durante três anos. Meu afilhado era muito espero, ele arrumava o quarto, acendia a lareira, cozinhava meu mingau de cereais e esquentava meu samovar. Mas, ao mesmo tempo, ele era rude, um verdadeiro pestinha: ele corria, gritava, brincava, dava trombadas por toda parte e me perturbava muito. Ora, devido à doença e aos aborrecimentos, eu gosto muito de ler livros espirituais. Eu tinha um livro excelente de Gregório Palamas sobre a prece de Jesus. Eu o lia quase sem parar, e recitava um pouco a oração. A bagunça do pequeno era-me extremamente desagradável e nenhuma medida, nenhuma punição podia impedi-lo de fazer besteiras. Acabei por inventar um meio: eu o forcei a sentar-se no quarto em um banquinho e a repetir sem cessar a prece de Jesus. De início, isto desagradou-o no mais alto grau e, para escapar, ele ficava quieto.

Mas, para forçá-lo a executar minhas ordens, peguei umas varinhas para corrigi-lo. Enquanto ele dizia a prece, eu lia tranqüilamente ou escutava o que ele dizia; mas, quando ele emudecia, eu lhe mostrava as varinhas e, de medo, ele retomava a oração; isto me fazia muito bem porque a calma começava enfim a se restabelecer em minha casa. Depois de algum tempo, eu percebi que as varinhas não eram mais necessárias; ele executava minhas ordens com mais zelo e prazer; mais tarde, seu caráter mudou completamente; ele se tornou doce e silencioso e se dedicava mais aos trabalhos domésticos. Eu fiquei feliz e passei a lhe dar mais liberdade. E o resultado? Pois bem, ele se habituou tão bem à prece que ele a repetia sem cessar, sem nenhum constrangimento da minha parte. Quando falei dito com ele, ele respondeu-me que sentia uma vontade insuperável de recitar a oração.

- E o que você sente?

- Nada de especial, mas me sinto bem enquanto repito a oração.

- Como assim, bem?

- Não sei explicar.

- Você se sente alegre?

- Sim, eu me sinto alegre.

Ele tinha doze anos quando estourou a guerra na Criméia. Parti para Kazan e o levei comigo à casa de minha filha. Uma vez lá, nós o instalamos na cozinha com os outros serviçais, e ele ficou muito infeliz porque eles passavam o tempo a divertir-se e a brincar entre si e também a rirem-se dele, impedindo-o de ocupar-se da oração. Ao cabo de três meses, ele veio me procurar e disse:

- Vou-me embora para casa; não posso mais suportar a vida aqui com todo esse barulho.

Eu lhe disse:

- Como você poderá ir tão longe, sozinho e em pleno inverno? Espere que eu parta também, e eu o levarei comigo.

Mas no dia seguinte, meu pestinha tinha desaparecido. Enviamos pessoas a procurá-lo por toda parte, mas foi impossível encontrá-lo. Enfim, num belo dia, eu recebi uma carta da Criméia; os guardas da casa anunciavam-me que, no dia 4 de abril, seguinte à Páscoa, haviam encontrado o menino morto na casa vazia. Ele estava estendido no chão em meu quarto com as mãos cruzadas sobre o peito, seu boné na cabeça e com as roupas leves que ele usava no dia de sua fuga.

Enterraram-no no meu jardim. Ao receber a notícia, eu me espantei da rapidez com que ele havia chegado até lá. Ele partira em 26 de fevereiro e foi encontrado no dia 4 de abril. Três mil verstas em um mês, é difícil de fazer a cavalo. É preciso fazer cem verstas por dia. E ainda por cima, com roupas leves, sem passaporte e sem um sou! Admitamos que ele encontrou uma condução para fazer a viagem, mas isto não poderia acontecer sem a intervenção divina. Assim, meu pequeno criado experimentou o fruto da oração, disse o senhor terminando sua história, e eu, no fim da minha vida, ainda não cheguei tão alto como ele chegou.

Então eu disse ao senhor:

- Eu conheço esse livro excelente de Gregório Palamas, que você leu. Mas aí é examinada sobretudo a prece vocal; você deveria ler este livro, que se chama aFilocalia. Nele, você encontrará o ensinamento completo da prece de Jesus no espírito e no coração.

Ao mesmo tempo, mostrei-lhe a Filocalia. Ele recebeu meu conselho com visível prazer.


***



[1] De hesíquia: calma, silêncio, contemplação.
[2] Ou seja depois do Pentecostes. No Oriente, o domingo que corresponde ao nosso domingo de Pentecostes é consagrado à Trindade e a segunda-feira ao Espírito Santo.
[3] Literalmente: na perícope 273. Este termo designa os textos da Bíblia, tais como são lidos no decurso dos ofícios ou da missa.
[4] I Tessalonicenses, V, 17.
[5] Efésios, VI, 18.
[6] I Timóteo, II, 8.
[7] Um pomiéchtchik, fidalgo pertencente à pequena nobreza rural.
[8] 1 versta = 1.067 metros.
[9] Esta é a pergunta tradicional endereçada por um discípulo ao seu mestre nos mosteiros e eremitérios do Oriente. Ela repete Mateus, XIX, 16: “Que devo fazer de bom para obter a vida eterna?”
[10] Pequeno tratado sobre a eficácia da prece, escrito por são Dimitri de Rostov (1651-1709).
[11] Monge ou eremita que leva uma vida de ascese e oração, e que, sem ocupar uma função específica no mosteiro, é escolhido pelos monges jovens ou por leigos como mestre espiritual.
[12] Cântico dos cânticos, V, 2.
[13] “Acima de tudo, recomendo que se façam preces, orações, súplicas, ações de graças por todos os homens.” (I Timóteo, II, 1)
[14] “Outrossim, o Espírito vem em auxílio à nossa fraqueza; porque não sabemos o que devemos pedir, nem orar como convém, mas o Espírito mesmo intercede por nós com gemidos inefáveis.” (Romanos, VIII, 26)
[15] Extraído do tratado De Cordis Custodia – Migne, P.G., tomo 147, col. 963-966. O texto russo traduz to logistikon não como “razão”, mas como “faculdade de elocução”.
>> no entanto, esta expressão também pode remeter a uma interpretação da definição aristotélica do homem como zôon lógon échon, ou seja, literalmente “vivente dotado de palavra", mais do que "animal dotado de razão" ou "animal racional". (N.T.)
[16] Esta história lembra um episódio da vida de são Serafim de Sarov. No outono de 1801, quando cortava lenha numa floresta, o monge foi atacado por ladrões que queriam roubar-lhe dinheiro; quando ele lhes disse nada possuir, eles o agrediram na cabeça e feriram gravemente. O ermitão recusou-se a se deixar tratar por médicos, confiando na ajuda do Senhor, que lhe havia enviado uma visão enquanto ele estava caído por terra. Ele pediu que seus agressores não fossem perseguidos, lembrando a palavra evangélica: “Não temais aqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma; temei antes aquele que pode precipitar a alma e o corpo na geena.” (Mateus, 10, 28)
[17] Antiga unidade monetária, de valor variável conforme a época e o lugar.
[18] “Isto é bom e agradável diante de Deus, nosso Salvador, o qual deseja que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade.” (I Timóteo, II, 4)
[19] “Não vos sobreveio tentação alguma que ultrapassasse as forças humanas. Deus é fiel: não permitirá que sejais tentados além das vossas forças, mas com a tentação ele vos dará os meios de suportá-la e sairdes dela.” (I Coríntios, X, 13)
[20] O alfabeto eslavo comporta quarenta e três letras, bastante diferentes dos caracteres do alfabeto russo.
[21] “Crês que há um só Deus. Fazes bem. Também os demônios crêem e tremem.” (Tiago, II, 19)
[22] “Se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber. Procedendo assim, amontoarás carvões em brasa sobre a sua cabeça.” (Romanos, XII, 20)
[23] “Eu, porém, vos digo: amai vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos [maltratam e] perseguem.” (Mateus, V, 44)
[24] Mateus, V, 40.
[25] “...para que vos conceda, segundo seu glorioso tesouro, que sejais poderosamente robustecidos pelo seu Espírito em vista do crescimento do vosso homem interior.” (Efésios, III, 16)
[26] “Mas vem a hora, e já chegou, em que os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade, e são esses adoradores que o Pai deseja.” (João, IV, 23)
[27] “Nem se dirá: Ei-lo aqui; ou: Ei-lo ali. Pois o Reino de Deus já está no meio de vós.” (Lucas, XVII, 21)
[28] “Outrossim, o Espírito vem em auxílio à nossa fraqueza; porque não sabemos o que devemos pedir, nem orar como convém, mas o Espírito mesmo intercede por nós com gemidos inefáveis.” (Romanos, VIII, 26).
[29] “Permanecei em mim e eu permanecerei em vós. O ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira. Assim também vós: não podeis tampouco dar fruto, se não permanecerdes em mim.” (João, XV, 4)
[30] “Meu filho, dá-me teu coração. Que teus olhos observem meus caminhos.” (Provérbios, XXIII, 26)
[31] “Ao contrário, revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não façais caso da carne nem lhe satisfaçais aos apetites.” (Romanos, XIII, 14); “Todos vós que fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo.” (Gálatas, III, 27)
[32] “O Espírito e a Esposa dizem: Vem! Possa aquele que ouve dizer também: Vem! Aquele que tem sede, venha! E que o homem de boa vontade receba, gratuitamente, da água da vida!” (Apocalipse, XXII, 17)
[33] “Porquanto não recebestes um espírito de escravidão para viverdes ainda no temor, mas recebestes o espírito de adoção pelo qual clamamos: Aba! Pai! O Espírito mesmo dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus.” (Romanos, VIII, 15-16).
[34] Trata-se sem dúvida de um sermão de Efraim o Sírio, no qual o julgamento é apresentado de modo particularmente dramático.
[35] 1 libra = antiga medida de peso, entre 380 e 552 gramas.
[36] Pope: padre das igrejas ortodoxas eslavas.
[37] Cf. Gregório de Nice, Vie de Moïse, ed. Daniélou (Sources chrétiennes, I bis), pg. 174: “Pois aí está realmente a perfeição de não abandonar a vida pecadora por medo do castigo, à maneira dos escravos, nem de cumprir o bem na esperança de recompensas, mas (...) não temer senão uma só coisa, que é perder a amizade divina e estimar apenas uma coisa honrada e amável, que é tornar-se amigo de Deus.”
[38] I Coríntios, XII, 31.
[39] I Tessalonicanses, V, 19.
[40] “Nem se dirá: Ei-lo aqui; ou: Ei-lo ali. Pois o Reino de Deus já está no meio de vós.” (Lucas, XVII, 21)
[41] Existe aí uma analogia com a divisão tripartite da vida espiritual, tal como definida por Máximo o Confessor e antes dele por Evagro: “A razão não se ocupa senão de Deus apenas (...) a inteligência é o intérprete das coisas, canta seus louvores e reflete sobre as coisas que unidas levam a eles, a sensibilidade enobrecida pela inteligência reflete enfim as forças e as atividades dispersas em tudo e revela à alma na medida do possível o sentido oculto das coisas.” (Máximo o Confessor,Ambigua P. G., Tomo 91, col. 1112-1116D).
[42] Salmos, CIII, 24.
[43] O rosário que os religiosos russo têm constantemente enrolado em volta da mão é constituído por um longo cordão de seda ou de lã cujos nós substituem as contas dos rosários ocidentais.
[44] “Por isso, a criação aguarda ansiosamente a manifestação dos filhos de Deus. Pois a criação foi sujeita à vaidade (não voluntariamente, mas por vontade daquele que a sujeitou), todavia com a esperança de ser também ela libertada do cativeiro da corrupção, para participar da gloriosa liberdade dos filhos de Deus.” (Romanos, VIII, 19-20).
[45] Também chamado raskolnik, um “velho crente”.
[46] Mateus, XVI, 16.
[47] Literalmente: o centurião e o decurião. Eleito pela assembléia comunitária, o centurião era o agente ativo da polícia rural, sob o controle direto do comissário de polícia. Estas funções, que remontam à idade média, só receberam uma definição precisa a partir de 1837, data de fundação da polícia rural. Os centuriões tinham sob suas ordens os decuriões, também eleitos pela assembléia comunitária.
[48] Diminutivo de Akoulina. É a forma popular de Acilina, santa cujas festas são celebradas em 7 de abril e 13 de junho na Igreja grega.
[49] Trata-se das Instruções de santo Antônio em 170 capítulos, que abrem as Filocalias grega e eslava. Elas podem ser lidas em Migne, P.G. tomo 40. Elas são certamente apócrifas, assim como todos os demais textos atribuídos ao fundador da vida anacorética (salvo a carta ao abade Teodoro, P.G., tomo 40, 1065-1066), e constituem um texto essencialmente estóico interpolado por um matiz cristão, de nuança bastante religiosa.
[50] I João, IV, 4.
[51] I Coríntios, X, 13.
[52] São Gregório Palamas.
[53] Provérbios, XVIII, 19.
[54] Casinha adaptada para os banhos de vapor, afastada da casa por precaução contra incêndios, de uso bastante difundido por toda a Rússia.
[55] Mateus, XXII, 37.
[56] Marcos, XIII, 33.
[57] João, XV, 4.
[58] Salmos, XXXIV, 9.
[59] Catequese de Simeão reproduzida em Migne, P.G. t.120, col 693-792, (Tratado da Fé).
[60] Há um episódio análogo na Vida do arcebispo Avvakum. Ele engasgara com um pedaço de peixe, mas sua filha Agripina acorreu e “com seus pequenos cotovelos bateu-me no dorso; um jato de sangue jorrou de minha garganta e eu pude respirar.”
[61] Nas izbas – casas russas de madeira – a poêle é uma parte em tijolos que permanece sempre quente; sobretudo no inverno, as pessoas colocam as camas na parte superior; muitas vezes os idosos passam aí todo o dia.
[62] Hino em louvor à Virgem que é cantado “sem se sentar”. O hino contém vinte e quatro estrofes na ordem do alfabeto grego, entre as quais são colocadas litanias. Composto para a festa da Anunciação, o hino celebra a um tempo este mistério e o da Encarnação. O acatista é o mais belo, profundo e antigo hino mariano de toda a literatura cristã.
[63] Salmo DXXII, 28.
[64] Filipenses, II, 13.
[65] “Anseio pelo conhecimento de Cristo e do poder da sua Ressurreição, pela participação em seus sofrimentos, tornando-me semelhante a ele na morte, com a esperança de conseguir a ressurreição dentre os mortos. Não pretendo dizer que já alcancei (esta meta) e que cheguei à perfeição. Não. Mas eu me empenho em conquistá-la, uma vez que também eu fui conquistado por Jesus Cristo. Consciente de não tê-la ainda conquistado, só procuro isto: prescindindo do passado e atirando-me ao que resta para a frente, persigo o alvo, rumo ao prêmio celeste, ao qual Deus nos chama, em Jesus Cristo.” (Filipenses, III, 13)
[66] Cf. Evagro o Pôntico, Tratado da Oração: “Uma vez que a inteligência chegou à oração pura e verdadeira, os demônios já não chegam a ela pela esquerda, mas pela direita. Eles lhe apresentam uma visão ilusória de Deus, alguma figura agradável aos sentidos, de maneira a fazê-la crer que obteve a perfeição do objetivo da prece...” A este respeito, comenta o Pe. Hausherr: “Leiamos asCentúrias de Evagro, supl. 27: “Os pensamentos diabólicos cegam o olho esquerdo, aquele que serve à contemplação dos seres,” O Comentador sírio Babai não precisou de muita imaginação para dizer que o olho direito serve à contemplação de Deus. Ora, é o estado em que nos encontramos, pois o intelecto “ora verdadeiramente”. Compreende-se assim que os demônios vêm da direita e não dos pensamentos, mas simplesmente com passos físicos.” (Hausherr, Orientalia Christiana, tomo XXX, 1933).
[67] Esta invocação, colocada no início de numerosos salmos, é cantada nas liturgias de são João Crisóstomo e são Basílio durante a primeira parte da missa e no começo das vésperas sob forma de antífona.
[68] Coletânea contendo as vidas dos santos mês a mês, conforme as datas de suas festas. O Menólogo russo moderno, obra de são Dimitri de Rostov, foi publicada em Kiev de 1684 a 1705. Ele foi lançado em Moscou pela Imprensa sinodal em 1759 graças aos cuidados de Josafá Mitkevitch e foi reeditada muitas vezes depois.
[69] “Mas [o Senhor] me disse: Basta-te minha graça, porque é na fraqueza que se revela totalmente a minha força. Portanto, prefiro gloriar-me das minhas fraquezas, para que habite em mim a força de Cristo.” (II Coríntios, XII, 9)
[70] Mateus, V, 45.


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